BART 6221/74 - A HISTÓRIA DO BATALHÃO DE ARTILHARIA 6221/74 - ANGOLA 1975

terça-feira, 5 de agosto de 2014

ANGOLA: A "LOUCURA" DOS GRANDES – DE RENÉ BACKMANN PARA O LE NOUVEL OBSERVATEUR/O JORNAL – DE 30 DE DEZEMBRO DE 1975

Soldados do MPLA, em exercícios, antes de marchar contra a FNLA - os combatentes estão a ser reciclados e habituados a articular acções de guerrilha com a táctica da guerra convencional

ANGOLA: A "LOUCURA" DOS GRANDES
DE RENÉ BACKMANN 
PARA O LE NOUVEL OBSERVATEUR e O JORNAL
30 DE DEZEMBRO DE 1975 

Guardei, na altura, este recorte de O Jornal, de 30 de Dezembro de 1975, sem saber muito bem para o que o quereria. Agora vai-me ser útil para reconstituir alguns acontecimentos já perdidos na memória, ao fim destes quase 40 anos. É um texto do jornalista francês René Backmann para o Le Nouvel Observateur, publicado em parceria com O Jornal. Atenção que é uma peça longa.

Guardei um outro recorte, com a cronologia das acontecimentos em Angola, publicado também n’O Jornal em 7 de Junho de 1976, que republicarei também aqui e vai servir-me para reconstruir a Cronologia que publiquei neste blogue em 24 de Junho passado.

Estes documentos levaram quase duas semanas a recuperar, entre digitalizações, OCR (Optical Character Recognitionde leitura digital e revisão do texto em word (quase reconstituição do texto em alguns casos) – enfim foram coisas morosas, no meio de trabalhos profissionais.


O Jornal, 30/12/1975

Era a última colónia portuguesa. Agora, desde a independência em 11 de Novembro, é o mais confuso dos campos de batalha. Três movimentos de libertação defrontam-se numa guerra sem quartel, que tem a ver ao mesmo tempo com o Congo, o Biafra e o Vietnam. Os Estados Unidos estão evidentemente presen­tes, como eternos fornecedores de armas e de fundos. Mas também a China. E Cuba. E a África do Sul. E o Zaire. E a França. Seria preciso sermos muito ingénuos para nos espantar­mos de que um território duas vezes maior do que a França, um dos mais ricos da Africa e ocupando uma posição estratégica decisiva, provoque uma verdadeira mobilização diplomáti­ca. Que, ainda mal saídas do vespeiro vietnamita, as duas superpotências, se empenhem, ainda mais desmascaradamente eis o que faz pensar se a palavra «detente» ainda tem ou alguma vez teve – qualquer significado. René Backmann passou várias semanas em Angola. Todas as contradições da política internacional surgem nesta reportagem sobre uma guerra explosiva cujos alvos estão muito para além do continente africano. Verdadeiramente, pode dizer-se que, hoje, são as grandes potências que disputam um lugar ao sol na que foi a maior colónia portuguesa.

ANGOLA: A "LOUCURA" DOS GRANDES
René Backmann


Sob as robustas asas azuis do «Skyvan», que baloiça nas pri­meiras turbulências do dia co­mo um peso pesado sobre um prato falso, um ondulante pano­rama de verdes e castanhos desdobra-se sem fim, há mais de uma hora. Um dedo sobre a car­ta, outro varrendo as amplas ru­gas da savana, onde corre o fio ocre e rectilíneo de uma pista, o copiloto grita, por entre o barulho dos dois turbopropulsores: «Samba Caju, Malanje».

Dois mil e quinhentos metros abaixo do avião, a Frente Norte passa algures, entre essas duas aglomerações, distantes cento e trinta quilómetros entre si. On­de, exactamente? Ninguém nos pôde dizê-lo, antes da partida, em Luanda. Ninguém saberá, mesmo agora, na escala de Cafungo, à beira do rio Cuango, onde o avião deixa um enfermei­ro e provisões para os prospecto­res da Diamang e engole o con­teúdo de alguns barris de gasoli­na empilhados no fim da curta pista de terra batida. Mas nós sabemos que, para poder desco­lar, o piloto teve de esperar, esta manhã, que o próprio ministro dos Transportes apusesse a sua própria assinatura no plano de vôo.

Nesta guerra múltipla, de con­tornos imprecisos, com frentes dispersas e móveis, as linhas de comunicação são tão longas e ténues, os filtros técnicos e políticos tão numerosos que as informações seguras se contam, numa semana, pelos dedos de uma só mão. Tão difíceis de ar­rancar ao silêncio opaco dos res­ponsáveis militares como os dia­mantes brancos aos aluviões do Cuango ou do Luachimo.

Que pretende encontrar e onde deseja ir? – perguntara-me, uma semana antes, entregando­me uma credencial e um «salvo-conduto», uma funcionária do Ministério da Informação. Eu tinha preenchido, conscienciosa­mente, um longo questionário policopiado, indicando os no­mes de uma meia dúzia de res­ponsáveis militares, políticos e económicos que queria interro­gar, e indicando que desejava deslocar-me às frentes Norte e Sul e também ao Luso, na frente Leste. De acordo. Logo que al­guma coisa seja possível, será avisado, no seu hotel.

Deixei Luanda, depois de duas semanas de estadia, sem ter obtido uma só das autori­zações que pretendia. Sem ter conseguido, por exemplo, inter­rogar o ministro da Defesa, «Iko» Carreira. Iko? Encontrá-lo-á no Estado-Maior. No Estado-Maior, no meio de uma praça roxa, à saída da cidade, semeado de abrigos e de bate­rias antiaéreas, não é possível encontrar «Iko». Nem na antiga escola inglesa, transformada em Q.G. operacional, nem na viven­da que um soldado me indica.

Nâo é de espantar, diz-me um comandante de passagem, em direcção ao Ministério da Informação. O Estado-Maior vai ser transferido para a fortale­za de São Miguel.

A fortaleza de São Miguel é o polígono amarelo que domina a baía de Luanda. Foi aí que, no dia 10 de Novembro, à tarde, algumas horas antes da procla­mação oficial da independência por Agostinho Neto, presidente da jovem República Popular de Angola, o último alto-comis-sário português, almirante Leonel Cardoso, recolheu a bandei­ra portuguesa, diante dos pára-quedistas em sentido. Atrás des­sas grossas muralhas, velhas de três séculos, os portugueses ti­nham instalado o Q.G. das suas forças expedicionárias. Nos so­fás da «sala de operações», dian­te de enormes mapas salpicados de alfinetes multicores, encon­tram-se agora os comandantes da zona do Exército angolano – a caça transformada em caçador.

«Iko» porém, não está lá. Tal como não se encontra na Vila Alice, um bairro de vivendas opulentas, bordado de manguei­ras, na parte oriental da cidade, onde se juntaram, contra todas as regras de segurança, os gabi­netes e os apartamentos dos principais quadros do Movimen­to Popular de Libertação de An­gola (M.P.L.A.). Tentativas de entrevistas com os ministros da Economia, do Interior, dos Ne­gócios Estrangeiros resultam igualmente infrutíferas. Nâo se esqueça de que estamos em guer­ra e que o nosso Governo acaba de se instalar — explica-me Luís de Almeida, director da In­formação, reconhecendo, contu­do, triste e sinceramente desola­do, que «alguma coisa não está bem na Informação», quando me queixo de chocar em toda a parte contra um mosaico de indiferença, ignorância ou impo­tência. Nunca recusas categóri­cas, mas sim promessas vagas, certezas fluídas: a indolência portuguesa multiplicada pelo torpor quente e húmido da Afri­ca Austral.

É preciso, pois, debruçarmo-nos sobre os dois jornais diários de Luanda, o «Jornal de Angola», pela manhã, e o «Diário de Luanda», à tarde, e seguir as conferências de Imprensa do comandante Juju, comissário político do Estado-Maior e por­ta-voz oficial das Forças Arma­das, para seguir de longe, o de­senrolar da guerra e o nascimen­to, doloroso, do novo Estado.

Duas vezes maior do que a França, catorze vezes e meia maior do que Portugal, este quadrilátero compacto, descoberto, em 1482, pelo navegador português Diogo Cão, transformou-se, agora, numa charneira decisi­va da geopolítica africana. De­pois do acesso à independência, em Junho último, da República Popular de Moçambique, o esta­belecimento de uma Angola pro­gressista, no lado ocidental do continente africano, perturbaria aos olhos dos ocidentais, o equilíbrio político na Africa Austral. Obstáculos aos expansionismos zairense e sul-africano, bases recuadas possíveis para os movimentos de libertação da Africa do Sul, testas de ponte para a penetração da influência soviética, as duas antigas co­lónias portuguesas, e em particu­lar Angola, são, pois, os objecti­vos de uma partida diplomática e política cujos limites, ultrapas­sam largamente os da Africa.

Tanto mais que Angola tem outros trunfos, além da sua po­sição estratégica. O subsolo regorgita de diamantes, fosfato, co­bre, zinco, níquel e petróleo. Quando a isso se junta uma mui­to importante produção de café (quarto lugar mundial), açúcar, tabaco e algodão, compreende-se que, desde há anos, os capi­tais americanos, sul-africanos, franceses, belgas, brasileiros, ale­mães e britânicos tenham vindo «trabalhar» em Angola e benefi­ciar do «boom» económico, sob a protecção do Exército colonial português.

A página colonial não tinha ainda sido voltada quando a guerra civil se sucedeu à luta de libertação
Livre da guerra, este país de seis milhões de habitantes, que se estende das margens do Congo aos confins abrasadores do deserto de Kalahari, poderia tor­nar-se, rapidamente, ao lado da Nigéria, da Africa do Sul e do Zaire, uma das principais po­tências africanas. Mas a página colonial não tinha ainda sido voltada quando a guerra civil se sucedeu à luta de libertação.

Ao contrário do que aconte­ceu na Guiné-Bissau, ou em Moçambique, onde um só movi­mento de libertação encarnava a vontade popular, em Angola, três organizações participaram, mais ou menos activamente ou tardiamente, na luta peia inde­pendência. O primeiro, por or­dem cronológica, é o Movimen­to Popular de Libertação de An­gola, M.P.L.A., fundado em 1956, em Luanda [da fusão de vários pequenos grupos anti-coloniais, inclusive da recentemente constituída célula de Luanda do Partido Comunista Português, iniciando a sua acção em 1961], por jovens in­telectuais marxistas e nacionalis­tas, saídos da pequena burguesia umbundu. As armas? Vêm da China, da U.R.S.S., que, pou­co a pouco, aumentará o seu auxílio, sobretudo na última fa­se da luta.

Entretanto, enxamearam a re­gião de Luanda para Cabinda, no Norte, e depois para o Leste e para o Noroeste. Quando, em 25 de Abril de 1974, o regime fascista português é derrubado, o M.P.L.A. controla a costa ao sul de Luanda e uma larga fatia de território que vai do Oceano até à fronteira com o Zaire. Poeta e médico naciona­lista, preso pela polícia política portuguesa, dirigente revolucio­nário, António Agostinho Neto, 53 anos, está à cabeça do M.P.L.A. há mais de quinze anos. É um homem ao mesmo tempo tími­do, silencioso e autoritário. Os seus dotes de orador são medíocres, mas a actividade in­cansável que desenvolveu, em todos os azimutes, nos últimos anos, passeando o seu rosto se­creto do Vaticano a Pequim, permitiu-lhe impor a imagem do M.P.L.A. na maior parte dos países do Terceiro Mundo e eclipsar a principal organi­zação rival, a Frente Nacional de Libertação de Angola (F.N.L.A.).

Nascida em 1962, da fusão de duas organizações provenien­tes da etnia bakongo, a F.N.L.A. praticamente nunca com­bateu fora da sua região de ori­gem, no Norte de Angola. Alia­da incondicional do Zaire [diri­gido sucessivamente por Lumumba, Kasavubu, Tschombé e Mobutu], a Frente parece não ter nunca ousado distanciar-se do seu berço e do seu poderoso protector. Era através de Kins­hasa, na verdade, que chegavam de Washington, mas também de Pequim, fundos, armas e mate­rial. Os Estados Unidos tinham escolhido jogar, desde o início, na F.N.L.A., sobre o campo de batalha angolano, para con­trolarem o curso da guerra e terem êxito quando chegasse o momento da divisão das rique­zas do país.

Quanto aos chineses, se esco­lhiam misturar as suas metralha­doras AK 47 com as armas enviadas pela C.I.A. era para pregar uma partida à ajuda dada pela U.R.S.S. ao movimento rival, o M.P.L.A. Curiosa escolha: envolvidas num vocabu­lário vagamente anti-imperialista, as ideias políticas do «leader» da F.N.L.A., Holden Roberto, de 52 anos, inspiram-se, com efeito, mais no mobutismo do que no maoismo: o socialismo não é adaptável à Africa, onde o lucro é o motor de toda a economia e os capitais estran­geiros são bem-vindos.

Impulsivo e colérico, Holden Roberto cultiva cuidadosamente a imagem de chefe militar temível e de político decidido e glacial, que os seus amigos construíram desde há alguns anos atrás. Dólmans militares se­veros, óculos de lentes fumadas, rosto hermético de lábios finos, ele está mais à vontade no meio das intrigas de Kinshasa, do que diante das multidões. Convenci­do de que é o Mobutu de Ango­la, ele é, na realidade, o joguete das forças que julga dominar: a sede de poder do seu vizinho zairense, o apetite das grandes sociedades estrangeiras, a nostal­gia de certos centuriões portu­gueses que o auxiliam no seu combate «para libertar Angola do jugo comunista», a rivalida­de entre a China e a U.R.S.S., a «vigilância» americana e o velho reflexo tribal dos Bakongos. De resto, foi por reprovar que os privilégios que Holden dava à etnia bakongo no seio da F.N.L.A. que um dos seus lugares-tenentes, o antigo estu­dante de Ciências Políticas, Jo­nas Malheiro Savimbi, rompeu com ele, em 1964, para fundar, dois anos mais tarde, o terceiro movimen­to de libertação: a União Nacio­nal para a Independência Total de Angola (U.N.I.T.A.). 

De­fendendo um socialismo angola­no «comedido e aberto aos capi­tais estrangeiros, a U.N.I.T.A. apoia-se sobre uma etnia quase maioritária em Angola, os Ovibundus. Factor de coesão, esta característica que faz a sua força, faz, também, a sua fraque­za: fora da região ovibundu, a U.N.I.T.A. não existe, e não pode, assim, aspirar a uma vocação nacional. Mesmo antes do 25 de Abril, os «pieds-noirs» de Angola tinham feito de Jonas Savimbi, quadragenário robusto e barbudo, que vive em fato de combate, o seu campeão, «Úni­co-Negro-Inteligente-de-Toda-a-Africa»: esta defi­nição, construída sobre as ini­ciais de U.N.I.T.A., mostra qual era a popularidade de Sa­vimbi no seio de uma população branca transtornada pelas pers­pectivas da independência e se­duzida pelas promessas de «sociedade multirracial fundada so­bre o liberalismo económico». Durante algum tempo considera­do como maoista, Jonas Savim­bi, que já viveu na Suíça, na Zâmbia, no Cairo, viajou na China e em toda a Europa, sabe perfeitamente explorar, com vantagem, o messianismo endémico das tribos do Centro e do Leste do país.

As revelações feitas a seu res­peito depois da queda do regime de Caetano, em Lisboa, permiti­ram descobrir que a U.N.I.T.A., durante os primeiros anos da guerra colonial, tinha actua­do em colaboração com os ser­viços secretos do Exército portu­guês contra o M.P.L.A.. Rece­bido numerosas vezes, no Eli­seu, pelos colaboradores próxi­mos de Valery Giscard d'Estaing, Jonas Savimbi, que se desloca a bordo do seu jacto parti­cular, é, neste conflito, o ho­mem da França e da Africa do Sul. Depois do golpe as Estado em Lisboa, o seu movimento é o primeiro a assinar um acordo de cessar-fogo com Portugal, em 17 de Junho de 1974.

No dia 12 de Outubro, é a vez da F.N.L.A.; dez dias mais tarde, o M.P.L.A.. Emer­gindo da clandestinidade, os três movimentos vão-se instalar em Luanda, feudo do M.P.L.A., onde os afrontamentos não tar­dam a degenerar em motins. Du­rante dez meses, entrecortados de tréguas frágeis e acordos vio­lados, a capital angolana será o teatro de uma batalha sangren­ta que faz quatro mil mortos, arruina a economia, expulsa do país a esmagadora maioria dos quatrocentos mil europeus e não terminará antes de Julho, após a expulsão da F.N.L.A. e da U.N.I.T.A. de Luanda, pelas tropas do M.P.L.A.

Agostinho Neto, a imagem do MPLA - Holden Roberto, as intrigas de Kinshasa - Jonas Savimbi, o messianismo do Centro e do Leste...

Um país no caos, na hora em que deveria ascender à independência

Ultrapassados pela amplitude do conflito e das suas impli­cações internacionais, os novos dirigentes portugueses dividem-se, também, quanto à política a adoptar. Uns, tal como o almi­rante Rosa Coutinho, alto-comissário em Luanda, de Julho de 1974 a Janeiro de 1975, são partidários de um apoio total ao M.P.L.A.; os outros são favoráveis a uma atitude de es­trita neutralidade. Esta será a política oficialmente seguida, depois da assinatura, em Janei­ro de 1975, no Alvor, no Sul de Portugal, dos acordos entre os três movimentos e a antiga potência colonial, que previam a constituição de um Governo de transição M.P.L.A.-U.N.I.T.A.-F.N.L.A -Portugal e a organização de eleições an­tes da data da independência, fixada para 11 de Novembro. Até à partida do último alto-comissário, almirante Leonel Car­doso, no dia 10 de Novembro ao fim da tarde, Portugal, envol­vido nos seus próprios conflitos, permanecerá, assim, espectador de uma descolonização que lhe escapa e que atira o país para o caos, numa altura em que de­veria atingir a liberdade.

Primeira imagem de Angola: Luanda. A cidade ultrapassou, há muito, o seu anfiteatro natu­ral e estende-se, hoje, em longas avenidas rectilíneas, contorna­das por edifícios modernos, ao longo do semicírculo quase per­feito da baía. Esta baía orgulho­sa, contornada de palmeiras e guarnecida de torres, iluminada à noite pelas mesmas siglas gi­gantes que se vêem brilhar, em Londres, ou em Tóquio, os por­tugueses tinham feito dela mon­tra do seu império. Vista do lar­go, nada pareceria ter mudado, apesar de, sobre a fachada da banca comercial, as janelas iluminadas desenharem um V e um C entrelaçados, gigantescos, lembramdo a palavra de ordem do M.P.L.A.: «A Vitória é Certa».

De perto, logo que palmilha­mos as ruas, tudo é diferente. Em cada dez lojas, sete estão fechadas. No quarteirão da Ave­nida do Brasil, onde a F.N.L.A. tinha instalado os seus escritórios, centenas de vidros partidos e as fachadas dos imóveis de quinze andares estão crivadas de balas, foguetões ou estilhaços de obus. As paredes, as vitrinas, as árvores estão co­bertas de cartazes multicolores do M.P.L.A. Os rostos severos de Agostinho Neto, mas também as silhuetas guerreiras de Gika e de Hoji Ya Henda, dois comandantes mortos em comba­te e a cabeleira africana de Carlotta, heroína dos jovens militan­tes do O.M.A. (Organização da Mulher Angolana) encon­tram-se por todo o lado, assim como as palavras de ordem do movimento: «Produzir é resis­tir», «Resistência popular gene­ralizada», «A vitória é certa».

Sem descanso, circulam sem capota, numa movimentação sin­gularmente fluída, desde o êxodo dos portugueses, Land-Rover e mini-jipes japoneses ou britânicos, com a sua carga de soldados das F.A.P.L.A., de Kalachnikov em punho. Nos passeios da Avenida dos Restauradores, semeados de caixas de gelados, pequenos engraxadores de caixa ao ombro, insinuam-se nas portas dos hotéis e tentam vender-nos, por dez escudos maços de cigarros Hermínios, que custam 5$50 nas tabacarias. Enganas-te, camarada, diz o borlista de doze anos, a quem eu repreendo. 5$50 é o preço na fábrica.

Camarada: toda a gente, em Luanda e na zona do M.P.L.A. se chama assim. Toda a gen­te aperta a mão utilizando o ve­lho sinal de reconhecimento, próprio dos guerrilheiros: o cru­zamento dos polegares. «Cama­radas», gritavam, de vez em quando, dos jipes, os soldados da F.N.L.A. quando as três organizações coabitavam em Luanda, no último Verão... e eles disparavam as metralhadoras so­bre todos os que se voltavam, porque, na F.N.L.A., todos se chamam «irmãos»...

A capital sem brancos nem géneros frescos

O mercado negro tornou-se endémico. No porto, onde os es­tivadores enriquecidos pelos subornos de portugueses ansiosos por embarcar o mais depressa possível os seus preciosos caixo­tes, se transformaram por sua vez, em corruptores, alguns fun­cionários fecham os olhos às fu­gas. Segundo um técnico, os des­vios ao controlo aduaneiro atin­gem quase cinquenta por cento da mercadoria. Os dólares com­pram-se por quadtro vezes o seu valor.

Como o dinheiro angolano vale, fora de Angola, o equiva­lente ao peso em papel, os refu­giados atiraram-se a tudo o que pudesse ser comprado e revendi­do a bom preço: jóias, relógios, prata, instalações de alta fideli­dade. Num enorme caixote de um colono em trânsito para Lis­boa soldados do M.P.L.A. chegaram a descobrir, no fim do mês passado, na doca, um Land Rover desmontado.

Nem vale a pena dizer que a cidade está exangue. Despojada da quase totalidade da sua população branca, não restariam mais do que 15 mil brancos. Luanda, escalavrada, perdeu a quase totalidade dos seu quadros administrativos, técni­cos e comerciais, perto de todos os seus artesãos. Este êxodo, a juntar aos rigores da guerra, ex­plica a amplitude da penúria. As principais zonas de criação de gado, animais domésticos e de culturas alimentares estão nas mãos do inimigo, os circui­tos comerciais, dominados anteriormente pelos camionistas e retalhistas portugueses, soço­braram com a partida destes, sem que os novos responsáveis tenham tido tempo e possibili­dade de os substituir.

Resultado: no supermercado Angola, no centro da cidade, só se encontram massas, regimes de emagrecimento, farinha láctea, flocos de aveia e de bana­na, bombons de chocolate, quei­jos e atum em lata, tudo coberto de pó e em «stock» há meses. Nem legumes, nem carne, nem leite, nem ovos.

Nos musseques, «bidonvilles» de madeira e folha, em que vive, às portas da cidade branca, a quase totalidade dos 350 mil ne­gros de Luanda, a situação é ainda pior. As cooperativas de distribuição, existentes mas em estado embrionário, não podem repartir mais do que uma quantidade insuficiente de géneros, como cebolas, farinha de milho e óleo, em estado de conser­vação por vezes duvidoso.

«Os comerciantes brancos, que viviam às portas dos musse­ques, tiravam lucros de 50 por cento, disse-nos um militante do M. P. L. A., mas certos co­merciantes negros que lhes to­maram o lugar tiram 150 por cento. E nós não podemos con­trolar toda a gente.»

Uma força nunca vista em Angola

A organização da resistência nas cidades, tal como a mobili­zação nos campos, é contudo a chave da vitoria final, numa guerra que todos predizem será longa, apesar dos últimos êxitos das F.A.P.L.A..

Na frente Norte, estabilizada desde o Verão, a uma vintena de quilómetros de Luanda, nas margens do rio Dande, as F.A.P.L.A., braço armado do M.P.L.A., lançaram uma vigo­rosa ofensiva em direcção ao Ambriz, onde está instalado o Estado-Maior da F.N.L.A., e ao porto do Ambrizete, donde parte a estratégica estrada que conduz a Kinshasa, e que a F.N.L.A. utiliza para enviar para o Zaire o petróleo extraído dos poços «off shore». Em poucos dias, as F.A.P.L.A. progrediram uma centena de quilómetros e os acessos ao Ambriz já se encontravam, há uma semana, ao al­cance dos seus canhões e dos seus lança «rockets» de 122 mm.

No Sul, depois de ter assistido ao avanço vertiginoso da, força de mercenários vinda da África do Sul, as F.A.P.L.A. retoma­ram, há semanas, a ofensiva e conseguiram deter, no dia 21 de Novembro, a progressão da «co­luna branca», comandanda por oficiais sul-africanos. Num mês, essa coluna tinha percorri­do mais de 1000 quilómetros desde a fronteira da Namíbia, a Sul, até Novo Redondo, to­mando, uma após outra, todas as cidades costeiras, em particu­lar o moderníssimo porto do Lobito.

«Não dispúnhamos de meios suficientes para os deter, dis­se-nos, então, um oficial portu­guês que aderiu ao M.P.L.A. Precisávamos de material anticarro de longo alcance. Dispo­mos apenas de «bazzokas» e, no terreno descoberto em que eles actuam, jamais podíamos aproximar-nos suficientemente, sem que fossemos vistos e esmagados pelo seu poder de fogo.»

Nunca fora visto, em Angola, uma tal cópia de material de guerra moderno: mil e quinhentos homens, comandos sul-afri­canos, antigos comandos portu­gueses recrutados na Rodésia e na Africa do Sul por mil rands (cerca de 31 contos) mensais, mercenários diversos e soldados negros da U.N.I.T.A. e da F.N.L.A., apoiados por uma vintena de blindados franceses, «AMI 90» Panhard novos em folha, equipados com peças de 90 mm, uma vintena de blinda­dos ligeiros británicos Marmion Harrington, helicópteros «Allouette», camiões em grande número e engenhos para a tra­vessia de rios. Tudo isto seguido de um formidável escalão de logística, transportando reservas de água, combustível e alimen­tos, abastecido a partir de Win­doek, na Namíbia por aviões de transporte «C130» sem emble­ma de nacionalidade, pintados de verde e negro, que aterravam no aeroporto de Benguela, onde um jornalista da Reuter ouviu soldados brancos a falar em in­glês «com um sotaque sul-africano».

Foi perto da aldeia do Ebo, a uma centena de quilómetros a nordeste de Novo Redondo, que a coluna experimentou o seu primeiro desaire: uma dúzia de blindados destruídos, várias dezenas de mortos e feridos, uma centena de prisioneiros.

Enquanto a Norte e a Sul se desenrolavam estas duas ofensi­vas, uma parte da coluna afastava-se da costa e deslocava-se para Nordeste, por Silva Porto, com a intenção aparente de atin­gir Malanje, como se os dois movimentos que se aliaram contra o M.P.L.A., a U.N.I.T.A. e a F.N.L.A., tivessem decidido, prevenidos pelas sucessivas derrotas no Caxito, fazer a sua junção no eixo rodoviário Este-Oeste, Luanda, Henrique de Carvalho, e progre­dir para a capital, por Leste e não por Norte.

Pela primeira vez as três potências estão em Jogo

Até há semanas, o Esta­do-Maior das F.A.P.L.A. demonstrava certa pressa em en­viar para o combate unidades constituídas por soldados com poucos dias de instrução, pois em vésperas de independência era preciso manter as mesmas linhas de frente, custasse o que custasse, os êxitos que acabou de alcançar iriam permitir-lhe respirar um pouco, e tirar parti­do desta pequena pausa para es­boçar a necessária reorgani­zação do seu exército, e a sua reconversão para a guerra mo­derna de movimento.

Nada se pretende abandonar daquilo que fez das F.A.P.L.A. um exército popular, nem a combinação das unidades mi­litares com as milícias locais «apuradas», nem a dualidade a todos os níveis do comando mi­litar e político, nem a formação ideológica dos oficiais; mas os comandantes serão reciclados e habituados a articular as acções e as tácticas de guerrilha com a movimentação rápida dos blindados e a utilização de ar­mas pesadas. E isto porque, já não é segredo, foi graças aos canhões de 120 mm, aos carros «T34», aos mísseis anticarro «R.P.G.7» fornecidos desde o 11 de Novembro pela U.R.S.S. ao M.P.L.A.que a evo­lução dos acontecimentos pôde ser reposta a seu favor. Sem dúvida que, desde 1966, a maior parte do material utilizado pelo M.P.L.A. veio da Europa de Leste. Nesse exército hetero­géneo, as «Kalachnikov» so­viéticas e os uniformes de com­bate jugoslavos ou cubanos so­brepõem-se às espingardas «G-3» e aos camuflados leopardos apanhados aos portugueses. Mas, desde a independência, «no quadro das relações de Es­tado a Estado, foi concedido ao governo angolano um auxílio suplementar», e os aviões de transporte «Antonov» sucedem-se uns aos outros no aeroporto de Luanda, enquanto, no porto, na­vios ostentando a bandeira so­viética são descarregados fora dos olhares indiscretos.

Já no dia 11 de Novembro foi possível ver, no desfile das F.A.P.L.A., no meio dos «Berliet» e dos «Unimogs» cedi­dos pelos portugueses, um ca­mião ambulância pesado e dois blindados «B.R.D.M.-2» de fabrico russo. Desde essa data, o ritmo de entregas acelerou, e o M.P.L.A. aparentemente, não hesitou em, após o desem­barque, lançar essas armas na contra-ofensiva.

«Apreciamos altamente a so­lidariedade internacional para com a nossa luta de quinze anos», respondem os respon­sáveis quando interrogados acerca do auxílio recebido do estrangeiro e, em particular, so­bre a presença de instrutores cu­banos. Hoje, a sua existência não deixa dúvidas a ninguém. São os próprios comandantes das F.A.P.L.A. quem afir­mam que o papel dos cubanos foi decisivo na frente de Novo Redondo, onde os soldados an­golanos teriam recuado, não fos­sem os vigorosos incitamentos dos instrutores.

Por outro lado, diversos jor­nalistas viram, algures na zona de Malanje, militares de unifor­me verde-azeitona,sem qualquer dintintivo, com uma «Kalachni­kov» nova em folha ao ombro e um cigarro na boca, contando aos pequenos pioneiros do M.P.L.A. «armados» com as suas pisto-las-metralhadoras de madeira, a epopeia da «Sierra Maestra», num português mesclado de palavras espanholas. Competentes, discretos e disciplinados, vão sem dúvida desempenhar um papel de grande importância na reciclagem das F.A.P.L.A., e, em particular, na formação de apontadores de canhão ou de lança-foguetes soviéticos, que o exército cubano utiliza há quinze anos.

A chegada ou a entrada na liça destes reforços e os êxitos que permitiram ao M.P.L.A. nas duas principais frentes irri­taram profundamente Henri Kissinger que aproveitou um dis­curso perante uma associação económica de Detroit para lançar um aviso à União So­viética: «as nações africanas são as primeiras a mostrar-se res­sentidas relativamente ao envol­vimento soviético. Mas os Esta­dos Unidos não podem conti­nuar indiferentes quando uma potência se compromete numa política intervencionista numa região tão distante do seu terri­tório e tão estranha aos seus in­teresses tradicionais.»

O incorrigível Henry, apesar de experiente em «política inter­vencionista», esqueceu, por cer­to, nesse dia, o que havia decla­rado, uma semana antes, peran­te, uma comissão do Congresso: «É correcto assumir que uma parte do auxílio americano ao Zaire se destina de facto a Angola.» Além disso, dois dias de­pois do aviso de Detroit, o «New York Times» revelava que o auxílio americano ao Zaire seria elevado, este ano, de 20 para 60 milhões de dólares, e que o presidente Gerald Ford e Henry Kissinger tinham já ob­tido a este respeito o acordo de diversas comissões parlamenta­res.

«Holden Roberto, chefe da F.N.L.A.», especificava ainda o «New York Times», «foi esco­lhido, em 1962, pelo presidente Kennedy e pela C.I.A., para estabelecer a ligação entre os Estados Unidos e os grupos au­tóctones chamados a expulsar um dia Portugal de Angola. (...) O objectivo principal da nova iniciativa clandestina dos Esta­dos Unidos, concluía o jornal, era realçar o seu apoio ao presi­dente Mobutu, o homem em quem Henry Kissinger confia para se opor aos interesses de Moscovo em Africa e defender os de Washington nas diversas conferências internacionais.»

Mas o caso, como se sabe, não se resume ao choque, por movimentos rivais entrepostos, entre os Estados Unidos e a U.R.S.S. Pela primeira vez, as armas chinesas e soviéticas es­tão frente a frente, as primeiras nas mãos da F.N.L.A. e as segundas nas do M.P.L.A.. Pela primeira vez, também, a China, os Estados Unidos e a União Soviética parecem estar, simultaneamente, envolvidas no mesmo conflito africano, en­quanto na sombra, a França e a Inglaterra estão igualmente activas.

No entanto, a China, que ti­nha enviado instrutores para o Zaire, acaba, ao que parece de os retirar, sem se chegar a saber se foi, por agora, ter decidi­do passar a apoiar a U.N.I.T.A., ou se deseja, manter-se distante de todos. A verdade é que não são já os chineses, mas os nortecoreanos, quem treina as forças zairenses. A frente di­plomática, como se vê, está tão movediça como a militar...

A França e as águas turvas da direita

Nestas águas turvas, que jogo faz a França? Em primeiro lu­gar, claro, nada que possa desagradar aos bons clientes nomea­damente dos seus negociantes de armamento que são o Zaire e a Africa do Sul. Em segundo, participar, à sua escala, na vasta ofensiva ocidental contra a ex­pansão do socialismo em Africa, enfim, «last bur not least», pre­servar a possibilidade de, um dia, ter uma palavra a dizer na partilha das fabulosas riquezas de Angola: petróleo, ferro, dia­mantes e minerais diversos.

Paris joga, portanto, em toda a escala da direita: sem escolher verdadeiramente entre o subtil e hábil Savimbi e o obstinado e impulsivo Holden, que são re­cebidos à vez no Eliseu, «fecha os olhos» à utilização pela colu­na de mercenários de material entregue de fresco à Africa do Sul. Transportes «Transall» en­tregam discretamente ao Zaire as auto-metralhadoras Panhard que o M.P.L.A.atinge facil­mente na floresta da frente Nor­te, e a Dassault, apesar da pro­messa formal feita, no Outono, a um representante do M.P.L.A. por um alto funcionário do Quai d'Orsay, fornece ao Zaire os «Mirage» encomenda­dos pelo presidente Mobutu.

Tudo isto, é claro, sem esque­cer o apoio fornecido pela S.D.E.C.E. (serviços secretos franceses) à F.L.E.C. (Frente de Libertação do Enclave de Ca­binda). Este Koweit africano, que o M.P.L.A. controla e onde a Gulf Oil explorou até à semana passada, com o seu acordo, uma enorme jazida de petróleo, é cobiçado pelo Zaire, enquanto os três movimentos angolanos, de acordo sobre este ponto, afirmam que não pode ser dissociado do território an­golano, embora dele diste mais de uns quarenta quilómetros e só em 1886 se tenha tornado protectorado português, trezen­tos anos depois da colonização de Angola. A França joga aí, claramente, o jogo da secessão e, a partir do Gabão, arma, trei­na e recruta as tropas da F.L.E.C, esperando a ocasião favo­rável, ou seja, uma ofensiva ge­ral contra o M.P.L.A., que obrigaria à separação do encla­ve.

Para o comandante Juju, co­missário político do Estado-Maior, e porta-voz das F.A.P.L.A., não foi por coinci­dência que a invasão do Sul de Angola pela coluna de merce­nários se verificou dois meses após a viagem do chete de Estado francês ao Zaire. Du­rante o Verão e o Outono, Jonas Savimbi fez, por seu lado, várias viagens entre a Africa do Sul e Paris. Quanto ao coronel San­tos e Castro, ex-oficial portu­guês e membro do E.L.P., que se tornou chefe da coligação en­tre a F.N.L.A. e a U.N.I.T.A., as suas viagens entre o Ambriz, onde se instalou o Estado-Maior da F.N.L.A., a África do Sul e Madrid, onde se reúnem os «leaders» do E.L.P., dos quais alguns vivem em França, foram coroados, em Outubro, pela formação e parti­da da coluna de mercenários da Namíbia, equipados com mate­rial de guerra francês. Demasia­das coincidências para o M.P.L.A. Por outro lado, os pilotos dos «Mirage», que deveriam ter regressado a França depois da entrega dos aviões, ficaram no Zaire...

«O comunismo, perigo dia­bólico que semeia o caos e a desordem, atingiu as nossas fronteiras, declarava, no dia 10 de Novembro, Piet W. Botha. ministro sul-africano da Defesa. Deve ser detido, não somente no interesse da África do Sul, mas também do mundo livre». Em conclusão: «Já é tempo que o 'mundo livre' intervenha di­rectamente na guerra de Angola para 'conter o expansionismo comunista' e proteger a rota do Cabo. pela qual transita 60 por cento do petróleo dos países da N.A.T.O. e o ouro sul-africa­no, que representa 70 por cento de toda a produção ocidental. Nós não temos intenção de assu­mir a batalha do mundo livre até à morte do último soldado sul-africano», advertiu Piel W. Botha,

A África do Sul deseja obter, no fim, através de negociações ou pela guerra, a criação, no Sul de Angola, de uma repúbli­ca tampão, nas mãos da U.N.I.T.A., destinada a preservar a Namíbia, a sua província do Norte, da influência «marxista». Considera já que a guerra de Angola apresenta para ela as­pectos diplomáticos positivos, dado que quebrou a unidade artificial da Africa negra, colocan­do face a face os países pró-soviéticos e os pró-ocidentais.

Assim, dia após dia, reforça o seu controlo sobre a U.N.I.T.A., que poderia mesmo eclipsar completamente a F.N.L.A., movimento que os oci­dentais julgam demasiado «de­sastrado».

Há duas semanas, aos jorna­listas que pediam ao Esta­do-Maior de Jonas Savimbi li­cenças para se deslocarem até à frente, os oficiais respondiam em tom arrogante: «As autori­zações vêm de Pretória». A mes­ma falta de autoridade se vê do lado da F.N.L.A.: «Dirija-se a Kinshasa, dizem em Amberiz e Carmona.

Blindado do MPLA carregado de combatentes. Desde 1966, a maior parte do material veio da Europa de Leste...

Criticas à actuação de Portugal

A internacionalização do con­flito, se tem partidários no de­partamento de Estado america­no e na C.I.A. é, por sua vez, muito contestada no Con­gresso, onde o senador Clark se tornou no campeão da «solução africana»: os Estados Unidos, pensa ele. deveriam diminuir a sua intervenção, mesmo que os soviéticos a aumentem, porque o M.P.L.A. quer seguir uma política de não-alinhamento e, por isso, não se enfeudará a Moscovo.

Não ser o cavalo de Tróia da penetração soviética na Áfri­ca Austral – eis, também, a preocupação que encontramos junto de certos militantes do M.P.L.A.: «Precisamos continuar a diversificar, como o temos fei­to já, as nossas fontes de aprovi­sionamento de armas, fazendo, por exemplo, um maior apelo à Jugoslávia...»

Para muitos, a ajuda de Por­tugal poderia ter sido, neste período uma ancoragem noutras águas, e esperou-se em vão um golpe de teatro no dia 10 de No­vembro. Em Lisboa, onde uma severa batalha opunha parti­dários e adversários do reconhe­cimento do novo Estado, os segundos dominaram a situação brandindo os acordos do Alvor, assinados no dia 15 de Janeiro e logo violados um mês mais tarde. E o almirante Leonel Cardoso partiu como um ladrão, num aparato inútil de forças e num estampido de armas ana­crónico e irrisório.

Como pôde, alé lá, o Governo português esconder-se debaixo de um pedaço de papel ignorado por todo o mundo, e partir com aquela desenvoltura desespera­da. Esta é uma pergunta que queima muitos lábios em Luan­da. E também em Lisboa, onde certos capitães de ontem se en­raivecem de ver consumar-se, desta maneira tão deplorável, uma descolonização que eles ha­viam sonhado exemplar. Quem dirá se o peso desta decepção e desta culpabilidade que se des­cobre, aqui e ali, em volta de uma frase, não pesará tanto, amanhã, no futuro de Portugal, como a multidão dos trezentos e cinquenta mil repatriados?

Para os novos dirigentes deste país despedaçado, que olham das janelas do velho palácio dos governadores, que se tornou na sede do governo, a sua capital destruída mas teimosa, a tarefa hoje é pungente. E eles pare­cem, por vezes, bem próximos de vergar sob o fardo. Seria esta a melhor forma de renunciar à participação de «personalidades independentes e patriotas» no Executivo e de constituir um ga­binete de guerra composto ape­nas por «militantes que deram provas durante a luta de liber­tação»?

Não teriam sucumbido à ten­tação de preferir a disciplina à competência? Estarão os diri­gentes libertos do hábito, fre­quente no seio do M.P.L.A., de considerarem os contesta­tários como traidores? Teriam ouvido a lição de Amilcar Ca­bral, o fundador do movimento de libertação da Guiné-Bissau, o primeiro teórico da luta contra o colonialismo português: «O povo não luta pelas ideias nem pelas coisas que vão dentro da cabeça dos homens. O povo combate e aceita sacrifícios exi­gidos pela luta a fim de obter vantagens materiais, para viver melhor e em paz, para o pro­gresso da sua existência e o futu­ro dos seus filhos.»

Na Guiné-Bissau, foi modifi­cando profundamente a vida dos camponeses, abrindo esco­las, hospitais, e lojas do povo que os membros da resistência do P.A.I.G.C. ganharam a sua causa nos campos, e, com a ajuda das populações, verda­deiramente destruíram o exérci­to português. Em Moçambique, a Frelimo aprendeu a lição. Em Angola, resta quase tudo para fazer. Partido das cidades, o M. P.L.A. nunca pôde, ou soube, entregar-se a essa vasta tarefa de organização nos campos.

«Nós começámos somente agora a antever o que deseja a população, segundo as regiões, diz um agrónomo. Aqui, os camponeses exigem terras, ali querem escolas e postos sani­tários, acolá ainda o problema principal é o dos preços, porque a tonelada do fertilizante au­menta todos os anos, enquanto os preços dos produtos agrícolas, fixados pelo mercado, permanecem estáveis. Precisa­mos de avançar passo a passo.»

Assim, pelo que vi, sucumbe-se facilmente, em Luanda, à ten­tação de confundir a voz longínqua da revolução socialis­ta com a vereda difícil da inde­pendência nacional, por onde o país hoje caminha penosamente. E é nos espíritos e não no terre­no que é preciso preparar as bases do futuro poder popular: «Produzir é resistir», dizem os cartazes, mas que pensam disso todos aqueles que julgam que o fim da exploração colonialista é o fim da obrigação, por conse­guinte do trabalho?

Aperfeiçoado pela guerra, o poder político que se infiltra lentamente em Luanda, será, amanhã, o instrumento da vitória ou da derrota militar. A sua força principal reside em ser a emanação de um movimento realmente multirracial e reside também, no facto de estar soli­damente instalado na capital, o que é uma legitimação em Áfri­ca; reside, finalmente, em ter conseguido, no 11 de Novembro uma abertura diplomática indis­cutível: uma trintena de países, incluindo o pragmático Brasil, anunciaram a sua intenção de abrir uma Embaixada em Luan­da, enquanto não houve um único chefe de Estado que reco­nhecesse a República Demo­crática e Popular da F.N.L.A. e da U.N.I.T.A., cujo governo se encontra instalado, desde o princípio do mês de No­vembro, no Huambo (ex-Nova Lisboa).

Humilhante abandono, prova de hipocrisia, senão de sabedo­ria, dos governos ocidentais, que fazem de Savimbi e de Holden simples cabos de guerra e dão aos seus combates as dimen­sões mesquinhas de cruzada an­ticomunista e de confrontação tribal. Como que desgastada por estas divisões, cansada de vãs mascaradas políticas e envergo­nhada das ligações criminosas que uma parte dos seus «leaders» históricos fazem com os racistas sul-africanos, a África parece paralisada pela guerra de Angola. Também parece espan­tada e impotente: as débeis reso­luções contraditórias duma de­sacreditada O.U.A. pro­vam-no.

A realidade das forças em presença, a amplitude dos inte­resses económicos e estratégicos em jogo levam a crer, com efei­to, que esta não seja uma nova aventura catanguesa ou biafrense que se acenderá, amanhã, no braseiro angolano, mas, antes, um interminável e sangrento Vietname africano. «Sacrifício», um comandante de vinte anos encontrado a alguns quilómetros da fronteira zairense, perto de Portugália, não pára de repe­tir aos seus homens: «A guerra aerá longa, muito longa».

«Le Nouvel Observateur» - «O Jornal»

Primeira página do "Diário de Luanda", de 24 de Outubro de 1975 - que comprei dias antes do embarque para Lisboa a 27 de Outubro de 1975 - um dos diários angolanos (o outro era o "Jornal de Angola" - antigo "Província de Angola", até Outubro de 1975)

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