terça-feira, 30 de dezembro de 2014

PREÂMBULO – PARA UMA HISTÓRIA DE ANGOLA (PARTE 5) – OS “REINOS” PRIMITIVOS (1) – O “REINO” DO KÔNGO



PREÂMBULO – PARA UMA HISTÓRIA DE ANGOLA (PARTE 5)
OS “REINOS” PRIMITIVOS (1)
O “REINO” DO KÔNGO

Como vimos no texto anterior aqui publicado, quando Diogo Cão atingiu a foz do rio Zaire, encontrou o potentado de que o rei D.João II já tinha notícia: o senhorio do Kôngo, a que chamou “Reino”, à falta de melhor designação. Contudo o senhor do Kôngo não era, como também já vimos atrás, um “Rei” – na tradição das línguas indoeuropeias – mas apenas uma espécie de “monarca feudal” arcaico, se quisermos fazer uma ténue comparação com a civilização europeia.

O território do senhorio do Mâni Kôngo (como era designado o Senhor do Kôngo localmente) teria sido ocupado durante o primeiro milénio D.C. pelos Bantu, na sua longa marcha pela África subsahariana, desde a foz do Níger – pressionados pela pressão dos povos saharaui, devido à desertificação do Sahara. Devemos referir que os bantu, apesar de serem portadores das técnicas do ferro e da cerâmica, nunca desenvolveram nada parecido com a escrita, pelo que, aquilo que se deduz da sua história, seja baseado nas tradições orais e na arqueologia. Na bacia do Zaire encontraram territórios muito propícios à agricultura e parte deles fixaram-se aí, desde o Séc. XIII, dando origem aos potentados/senhorios conhecidos na História daquela zona.

Mapa do Séc. XVIII ou início do XIX (?) de origem francesa, que assinala os diversos "reinos"

O Kôngo tinha a sua capital em Mbanza Kôngo (na época da colonização rebatizada como São Salvador do Congo) e irradiava o seu poder desde o Cabo Lopez – antigo Cabo de Sta. Catarina (no actual Gabão) –, a Norte, até ao Rio Kuanza, a Sul e desde o Atlântico ao Rio Kwenge a leste. O Senhorio do Kôngo dominava vários outros Senhorios subsidiários (que na óptica europeia, prestavam vassalagem ao Mâni Kôngo): o Nsi Ya Luangu, o Kakongo, e o N’Goyo (o território actual de Cabinda engloba partes destes antigos três senhorios), a Norte do Zaire e N´Soyo, Ndongo, Matamba, Kassange e Kissama, mais ou menos até às margens do Rio Kuanza – como se pode ver no mapa abaixo:


Como vimos também nos textos anteriores, Diogo Cão levou quatro nativos para Portugal, aquando do regresso da sua primeira viagem em 1483. Estes nativos retornaram ao Kôngo nas caravelas de Gonçalo de Sousa em 1490 – já falavam português – e eram acompanhados de sacerdotes católicos para a evangelização do Mâni Kôngo e seus subditos.

Entre aspas, citamos excertos de “O Reino do Congo” de Arlindo Correia:

“(...) Chegado Gonçalo de Sousa a Mpinda [capital do N’Soyo], baptizou-se em 3 de Abril de 1491 o Mâni-Soyo, que tomou o nome de Manuel e o seu filho que se chamou António. Tal só foi possível porque o Mâni-Soyo era tio e mais velho que o Mâni-Congo. Partiram então para a capital, mais tarde chamada S. Salvador e ali foi baptizado em 3 de Maio de 1491 o Mâni-Congo, que tomou o nome de João e sua esposa, que tomou o nome de Leonor, tal como o Rei e Rainha de Portugal. Pouco tempo depois, foi baptizado com o nome de Afonso o Mâni-Nsundi, filho do rei que tinha o nome gentílico Mvemba-a-Nzinga (...)”

Depois do baptismo, o Mâni Kôngo (Nzinga-a-Nkuwu, como João I) adoptou mesmo o título de Rei, à maneira europeia.

Representação do Mâni Kôngo Nzinga-a-Nkuwu (D. João I depois do baptismo)

Brasão de armas atribuído ao Mâni Kôngo


“(...) O rei possuía a ilha de Luanda e cabia-lhe o monopólio da recolha dos búzios do mar, chamados nzimbos ou cauris, que serviam de moeda no reino. É difícil calcular a população desta área, mas alguns estudiosos estimam-na em cerca de dois milhões, deixando de lado o cálculo por baixo de 532.000, avançado por John Thornton.

O solo do Congo é fértil devido às chuvas abundantes. O clima era doentio, e mortífero para os europeus que lá residissem. As condições de habitabilidade eram muito rudimentares, a água estava contaminada e proliferavam as mais diversas doenças, com destaque para o paludismo.

As principais riquezas exportáveis eram na altura o marfim e o cobre. As armadilhas para os elefantes eram enormes buracos, disfarçados com ramos de árvores, onde eles caíam e já não conseguiam sair. A exploração do cobre era feita à superfície.

Na monarquia congolesa, o herdeiro do trono não era determinado pela linha directa, mas sim pela colateral. O sucessor seria o filho mais velho da irmã do falecido rei. Mas esta regra era afastada tantas vezes que se pode considerar que o novo rei era eleito entre os membros do kanda, isto é, do clã real.

Entre os conselheiros do rei, sobressaía o Mani Vunda, com funções específicas de conselheiro político (...)”

“(...) Uma outra consequência da chegada dos portugueses, foi que os chefes das províncias passaram a designar-se por duques, condes e marqueses, tal como em Portugal e todos os fidalgos baptizados passaram a ter o tratamento de Dom. Os nobres adoptaram brasões. Foi criada uma Ordem de Cristo do Congo e a coroação do Rei passou a ter de ser presidida por um sacerdote.

Ruínas da antiga catedral de Mbanza Congo - arqueólogos portugueses estão a participar nas escavações actualmente levadas a cabo nesta cidade para recuperação do património histórico...

Reza a história que o rei do Congo, D. João I, passados uns anos, se aborreceu da religião católica e começou a favorecer o seu filho Mpanza-a-Kitima, que não se quisera baptizar. O Rei faleceu por volta de 1509 e este filho apresentou-se como sucessor. Mas a rainha D. Leonor mandou chamar o seu filho Afonso de Nsundi. Este reuniu um pequeno exército, afrontou e derrotou o seu irmão, invocando o nome de Jesus e do Apóstolo São Tiago, tornando-se rei (...)”

Mais tarde, a partir de 1576, com a fundação da cidade de São Paulo da Assunção de Loanda, a actual cidade de Luanda, por Paulo Dias de Novais, inicia-se o comércio de escravos com destino ao Brasil e, a partir daí, as coisas começam a descambar entre a monarquia portuguesa e o “reino” do Kôngo” e mesmo em lutas entre clãs no interior deste...

Para não tornar este post demasiado longo, os interessados podem consultar “O Reino do Congo” de Arlindo Correia, que pode ser lido na integra aqui: http://arlindo-correia.com/100807.html

Deixo aqui a listagem dos “Reis” do Kôngo, segundo uma lista mais ou menos oficial:

Rei Nzinga-a-Nkuwu, João I (1509)
Rei Mvemba-a-Nzinga, Afonso I (1509-1540)
Rei Nkanga-a-Mvemba, Pedro I (1540-1544)
Rei Mpudi-a-Nzinga Mvemba, Francisco I, (1544-1546)
Rei Nkumbi Mpudi a Nzinga, Diogo I (1546-1561)
Rei Mvemba-a-Nzinga, Afonso II (1561)
Rei Mvemba- a-Nzinga, Bernardo I (1561-1567)
Rei Mpudi-a-Mvemba Nzinga, Henrique I (1567-1568)
Rei Mpangu-a-Nimi Lukeni lua Mvemba, Álvaro I (1568-1574)
Rei Mpangu-a-Nimi Lukeni lua Mvemba, Álvaro II (1574-1614)
Rei Mpangu-a-Nimi Lukeni lua Mvemba, Bernardo II (+1615)
Rei Mbika-a-Mpangu Nimi Lukeni lua Mvemba, Álvaro III (1615-1622)
Rei Nkanga-a-Mvika lua Ntumba-a-Mvemba, Pedro II Afonso (1622-1624)
Rei Mvemba-a-Nkanga Ntinu, Garcia I (1624-1626)
Rei Mvemba-a-Nkanga Ntinu, Ambrósio I (1626-1631)
Rei Mvemba-a-Nkanga Ntinu, Álvaro IV (1631-1636)
Rei Mvemba-a-Nkanga Ntinu, Álvaro V (1636-1638)
Rei Mvemba-a-Nkanga Ntinu, Álvaro VI (1638-1641)
Rei Nkanga-a-Lukeni, Garcia II (1641-1661)

Durante o período das lutas pelo poder

Em M'Banza Kongo (São Salvador do Congo)

Rei Vita-a-Nkanga, António I (1661-1665)
Rei Mpangu-a-Nsundi, Álvaro VII, (1666-1667)
Rei Álvaro VIII (1667-1669)
Rei Rafael I (1669-1675)
Rei Mpangu-a-Miyala, Daniel I (1678-1680)
Rei Nsaku-a-Mvemba, Pedro IV (1694-1710)
Rei Mpangu, Pedro Constantino (+1710)

Em Ki-Mpangu

Rei Afonso III (1667-1669)
Rei Nkanga-a-Mvemba, Garcia III (1669-1678)
Rei Nlaza, André I (+1679)
Rei Nimi-a-Mvemba, Álvaro IX (+1680)
Rei Nzinga, Manuel I (+1680)
Rei Nsaku-a-Mvemba, Pedro IV (1694-1710)

Em Mbula

Rei Nsuku-a-Ntamba, Pedro III (1667-1679)
Rei Nsuku-a-Ntamba, João II (1679-1710)

Depois de 1718, o reino do Kôngo desmoronou-se por completo, devido sobretudo à série de guerras fraticidas (e contra os portugueses por causa do comércio esclavagista), acabando por se dividir em diversos pequenos senhorios, embora ainda tivessem existido “Reis” do Kôngo nominais (sem qualquer poder) até 1957.

Foto – o Rei do Congo D. António III (falecido em 1957) e família.

Fontes consultadas:

O Reino do Congo (on line: http://arlindo-correia.com/100807.html), de Arlindo Correia
As Origens do Reino do Kôngo, de Patrício Batsîkama
O Reino do Congo, de Chantal Luis Silva
Angola, Trilhos para o Desenvolvimento, de Filipe Zau

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quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

BOAS FESTAS PARA TODOS OS ANITGOS CAMARADAS

BOAS FESTAS !!!!

Símbolo romano do Sol Invictus

Na boa e antiquíssima tradição mediterrânica (diria mesmo que europeia), celebro o solstício de inverno, antecedente da celebração do Natal Cristão.

O Dies Natalis Solis Invicti (dia de aniversário do sol invicto – e o dia mais pequeno do ano) ocorre por volta de 21 de Dezembro – o solstício de inverno – a partir do qual os dias recomeçam a ficar maiores. Celebrava-se então a vitória da luz contra as trevas!!

Daí a tal antiquíssima tradição do "renascimento do Sol", que os cristãos adoptaram como "aniversário do nascimento de Cristo" (Dies Christi Natalis ou Natalis Domini) estabelecendo-o a 25 de Dezembro – para não parecer muito "colado" ao culto do Sol latino-mediterrânico.

Como sou ateu, prefiro celebrar o Sol Invictus – sem margem para dúvidas! E sem "bolas", nem pinheiros, nem presépios, etc... Mas para todos os meus antigos camaradas de tropa – eventualmente católicos – deixo aqui um desejo de que tenham umas BOAS FESTAS e um GRANDE ANO DE 2015!!!

 UM BOM
DIES NATALIS SOLIS INVICTI 
PARA TODOS OS MEUS ANTIGOS CAMARADAS 

E LEITORES DESTE BLOGUE!!!


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domingo, 23 de novembro de 2014

PREÂMBULO – PARA UMA HISTÓRIA DE ANGOLA (PARTE 4) – AS VIAGENS DE DIOGO CÃO (2) – O DESCOBRIMENTO DE “ANGOLA” PELOS PORTUGUESES

Caravelas
Quando falamos de caravelas, estamos a falar de um pequeno barco com duas velas latinas (de difícil manobra) com cerca de 20 metros de comprimento e 6 metros de largo – para comparar digamos que os pequenos cacilheiros que actualmente fazem a ligação Cacilhas/Lisboa têm quase 30 metros de comprimento e 7 metros de largo – e não se aventuram em mar alto.
A vida a bordo das caravelas era de uma dureza atroz. Os homens viviam num ambiente constantemente molhado. A alimentação era à base de biscoitos, peixe seco ou salgado, toucinho salgado, azeite, vinagre, vinho e água.
O leme era de difícil manejo e exigia muita concentração. Os homens dormiam onde podiam. 
Eram homens duros e determinados – e o mar não era (não é) coisa com que se brincasse.

PREÂMBULO – PARA UMA HISTÓRIA DE ANGOLA (PARTE 4)
 AS VIAGENS DE DIOGO CÃO (2)
O DESCOBRIMENTO DE “ANGOLA” PELOS PORTUGUESES

A segunda viagem de Diogo Cão na descoberta da costa de África, que se previa “até encontrar passagem para o Índico” – o que não aconteceu, como sabemos – é muito mais difícil de datar, devido aos ainda mais escassos elementos que sobreviveram. Vejamos então uma síntese do que é possível apurar:

Não há dúvida de que D. João II esperava que Diogo Cão alcançasse pelo menos os reinos periféricos do Prestes João (o mítico rei da Etiópia) ou mesmo o oceano Índico, pois um tal percurso tornava desnecessárias mais expedições ao longo da costa. D.João II enviou também, nesta segunda viagem, para o “rei” do Kongo (que na altura era Nzinga-a-Kuvu), uma embaixada com ricas prendas, ofertas de amizade, acompanhando também de recomendações para renegar aos ídolos, feitiçarias e abraçar a religião cristã.

Encarregado de empreender uma segunda expedição, Diogo Cão partiu na segunda metade de 1485 (eventualmente em Agosto).

Chegando ao estuário do Zaire, as caravelas aportaram a M’Pinda, a 10 Km da ponta do Padrão, residência do Manisoyo – o senhor do Soyo (nos relatos da viagem anterior refere-se uma “rainha”) – devolvendo os reféns embarcados na primeira viagem. Tendo-se apercebido que os emissários enviados ao “rei” do Kongo na viagem anterior, ainda não se encontravam em M’Pinda, e também de suspeitar que pelo rio Zaire poderia ter acesso mais rápido ao Índico, já que na exploração anterior não fora além das imediações de Nóqui, Diogo Cão decide zarpar rio acima. Procurou explorar o Rio Zaire, na esperança que pudesse vir a ser a extremidade meridional do canal que, segundo a mapa de Fra Mauro, separava a África Austral da massa do continente e desembocava no Índico perto de Quilóa.

Mapa de Fra Mauro (1459)

A expedição progrediu até às cataratas de Yellala (que impediam a progressão das caravelas), situadas a 170 Km do mar, onde os marinheiros gravaram várias inscrições nas rochas – incluindo os nomes –, deixando assim para a posteridade um precioso registo.

As famosas inscrições de Yellala

Vendo que não era possível progredir através do rio Zaire, Diogo Cão resolveu que a exploração teria de continuar por via marítima. Avançou então para a latitude (cerca de 15º Sul) da Baía de Moçâmedes – onde havia terminado a viagem anterior, navegando depois para além desta e verificando, com desilusão, que o continente se estendia para Sul, aparentemente sem fim.

Atingindo o Cabo Negro, na latitude 15º 42’ S, Diogo Cão ergueu outro padrão. E logo a seguir ancorou numa baía, hoje Porto Alexandre, a que deu o nome de “Angra das Aldeias”, devido à existência de duas povoações. Também entrou depois na “manga das areias”, hoje Baía dos Tigres.


Já depois da foz do rio Cunene (actual fronteira Sul de Angola – 17º de Latitude Sul) e navegando ao longo de uma costa desértica (Actual Namíbia), alcançou a latitude 21º 47’ S, onde ergueu outro padrão, o mais meridional de todos, num lugar a que hoje se chama Cape Cross (Cabo da Cruz, ou do Padrão da Serra) na actual Costa dos Esqueletos. Depois, ainda percorreram mais 50Km de costa para Sul do Cabo do Padrão da Serra, até à ponta dos Farilhões, a Hentiestbaai de hoje e foi aí que a expedição terminou.

Réplica do Padrão de Cape Cross (cujo original se encontra em Berlim) e inscrição em inglês, de 1986, assinalando os 500 anos da viagem de Diogo Cão...

O termo exacto da viagem, deve-se a uma legenda de um mapa de 1489 de Martellus, cujo texto sugere que Diogo Cão aí terá morrido. Se assim aconteceu, poderá ter sido essa a razão porque os navios não avançaram mais para sul ?

Não se sabe nada do que se passou naquela Ponta dos Farilhões que determinasse o fim da expedição. Rui de Pina, cronista-mor do Reino acrescentou na sua Crónica de D.João II, que o “rei” do Congo, pediu que D.João II lhes mandasse padres para instruir o seu povo, desejava ter pedreiros que construíssem igrejas e casas, de modo que, neste e noutros aspectos, o seu “reino” fosse semelhante ao de Portugal, todos eles foram recebidos pelo rei de Portugal D. João II, em Janeiro de 1489.

É importante sublinhar a data [Janeiro de 1489] da embaixada congolesa, que não podia ter vindo nos navios da expedição de Diogo Cão. Como foi possível ser recebida por D.João II dois anos depois, se os sobreviventes da 2ª viagem de Diogo Cão regressaram ao reino, antes de Agosto de 1487? Uma vez que foi nesta data que se deu a partida de Bartolomeu Dias para a expedição que, finalmente dobraria o Sul da África atingindo o Índico. Acontece que João de Santiago foi o piloto escolhido por Bartolomeu Dias para pilotar a naveta de mantimentos da sua frota constituída por mais duas caravelas. O nome de "João Santiago" está gravado nas Pedras de Yellala para a posteridade. Portanto este marinheiro fez parte da 2ª viagem de exploração de Diogo Cão.

O que acaba por parecer mais correcto é que, depois de regressar da descoberta do Cabo de Boa Esperança e aberto o caminho marítimo para a Índia, Bartolomeu Dias terá feito escala na foz do rio Zaire, em M’Pinda, onde embarcou em Outubro de 1488 os tais embaixadores do “reino” do Congo para Portugal.

E nunca mais se soube nada sobre Diogo Cão!

A trapalhada documental que se seguiu, depois desta 2ª expedição, sobre o que aconteceu ao seu comandante, resultou, em parte, das afirmações do cronista João de Barros nas “Décadas da Ásia”. Decorridos 30 anos após os acontecimentos em que o cronista afirma:

“O navegador, Diogo Cão regressou ao reino e dele nunca mais houve notícia”.

Mas, se voltou ao reino, onde se encontra o seu túmulo? Ou D. João II, fez desaparecer todas as menções do navegador, por causa da hipotética errada informação sobre a proximidade do “fim do continente africano”? Mas não existem quaisquer provas que corroborem esse procedimento, por parte do monarca português.

A historiadora Therese Schedel – autora do livro “O Mosteiro e a Coroa“, sobre o mistério que rodeia o desaparecimento de Diogo Cão, refere numa entrevista:

«..a não existência de um roteiro da segunda viagem de Diogo Cão tem sido um mistério apaixonante... O navegador desapareceu durante a sua segunda viagem ou não?».

«...Os tripulantes que regressaram a Portugal [João de Santiago?] contaram que Diogo Cão se tinha embrenhado terra adentro e nunca mais aparecera... Muito possivelmente, talvez tivesse sido devorado por um tigre, quem sabe [mas sabemos hoje que nunca existiram tigres em África...] “. Contudo sobre esta Costa diz-se que “Também por ali aparecem leões, vêm do semi-árido, caminhando lentamente pelo leito dos rios até chegar à costa. E, como a vida animal não é tão abundante como a da savana, adaptaram-se ao cardápio disponível. Acabaram por descobrir uma nova fonte de alimento nas focas e nas baleias encalhadas, ocupando as praias da costa dos Esqueletos. Refeições que compartilham com hienas e chacais, ali em Cape Cross os leões vão à praia. Defendida por um mar turbulento que atira qualquer barco contra a costa, tem sido ao longo dos séculos cenário de vários naufrágios, que hoje são recordados pelos muitos restos de navios que surgem presos nas armadilhas da areia da praia. É a presença destes destroços que dá origem ao nome desta longa linha de areia que se estende até Angola, a Costa dos Esqueletos”.

Será que Diogo Cão se suicidou por lhe parecer que não conseguiria encontrar a passagem para o Oceano Índico? Ou regressou e foi ostracizado pelo rei, embora esta hipótese, muito divulgada pelos historiadores, nos pareça inverosímil, dado que não havia nenhum obstáculo (a não ser talvez os ventos contrários) para que a expedição avançasse para além daquela latitude...
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Terminada esta fase do Descobrimento da costa marítima de “Angola”, vamos, nos “próximos Capítulos” falar sobre o interland do território, sobre aquilo a que se chamam OS “REINOS” PRIMITIVOS DE "ANGOLA", que os portugueses encontraram quando lá chegaram.

Mapa do século XVIII com os "reinos" de "Angola"

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segunda-feira, 17 de novembro de 2014

PREÂMBULO – PARA UMA HISTÓRIA DE ANGOLA (PARTE 3) – AS VIAGENS DE DIOGO CÃO (1) – O DESCOBRIMENTO DE “ANGOLA” PELOS PORTUGUESES

Réplica do padrão de S.Jorge na Ponta do Padrão - Rio Zaire

PREÂMBULO – PARA UMA HISTÓRIA DE ANGOLA (PARTE 3)
 AS VIAGENS DE DIOGO CÃO (1)
O DESCOBRIMENTO DE “ANGOLA” PELOS PORTUGUESES

No título deste texto, escrevemos “Angola” – assim mesmo, entre aspas. Isto porque quando o navegador português Diogo Cão chegou ao território, Angola não existia. Nem sequer havia ainda o “senhorio” (Ngola Ndongo) que daria o nome actual ao país que agora conhecemos por essa designação.

Mas vamos por partes.

Evidentemente que, quando falamos em descobrimentos, estamos a adoptar o ponto de vista europeu: os europeus (portugueses neste caso) descobriram a “costa sul da África”, por exemplo. Mas o inverso não será falacioso, uma vez que os africanos também foram levados a “descobrir” os europeus – evidentemente por iniciativa dos primeiros... Contudo as coisas podem sempre ser colocadas sob os dois pontos de vista: se os europeus descobriram os africanos, estes foram levados a descobrir os europeus. Existe pois, um descobrimento reciproco, que terá sido eventualmente de perplexidade para ambas as partes: quem são estes tipos?

Como dissemos atrás, o navegador Diogo Cão foi enviado pelo rei D.João II (em 1482) a descobrir a costa ocidental africana. O problema é que não se conhecem nem as datas precisas das viagens nem quantas viagens este navegador realizou. Tudo isto devido à política secretista (confidencial, dir-se-ia actualmente) do rei, para ocultar os progressos da navegação portuguesa, dos vizinhos castelhano-aragoneses, italianos e mesmo franceses. Por causa dessa política não existem referências escritas ao que se passou neste reinado sobre essa matéria, senão por meia dúzia de apontamentos, em crónicas que nada têm a ver com essas viagens. E só por meio destes apontamentos cronísticos (ou mesmo outros) consegue entender-se alguma cronologia sobre o tema, ainda que não muito precisa. Digamos até que a própria viagem de Bartolomeu Dias na viragem do Cabo da Boa Esperança, só ficou a conhecer-se por um apontamento manuscrito de Cristovão Colón nas margens de um dos seus livros de leitura.

É de realçar que no estado actual das investigações, se presuma mesmo que, no final da primeira viagem do “descobrimento de Angola”, em 1483, Diogo Cão tivesse regressado ao reino, mas viajando para oeste propositadamente, descobrindo nessa rota a ilha da Ascensão e atingindo até o Cabo de S. Jorge na costa do Brasil !!! Este cabo, actual Cabo de Sto Agostinho, foi onde a armada de Pedro Álvares Cabral chegou quando “descobriu” o Brasil. E porque chegaria precisamente a este Cabo?

Isto tudo leva-nos a pensar muito a sério no porquê da insistência de D.João II na delimitação do meridiano “de Tordesilhas” a 380 léguas de Cabo Verde – nem 300 nem 400, mas exactamente 380. Porquê um número tão preciso?

O mestre de uma das naus de Cabral, aquando do “descobrimento” oficial do Brasil, conhecido por mestre João, refere ao rei D. Manuel que, quanto “ao sítio desta terra (o Brasil), mande Vossa Alteza trazer um mapa-múndi que tem Pêro Vaz Bizagudo de Lisboa, e por aí poderá ver Vossa Alteza o sítio desta terra; aquele mapa-múndi não certifica se esta terra é habitada, sendo um mapa antigo onde está escrita também a Mina.” Duarte Pacheco Pereira escreveria igualmente no seu Esmeraldo de Situ Orbis, dedicado a D. Manuel I, que em 1486 explorou a costa do Brasil...

Mas, perguntarão os meus amigos: o que tem o Brasil a ver com Angola? Tem! E muito. É que está estimado em cerca de 4.000.000 (sim 4 milhões), o número de escravos levados de Angola para o Brasil entre o século XVI e o XIX... Chega para relacionar as duas regiões?

Mas passemos então à Cronologia das Viagens de Diogo Cão na costa de Angola:

Em 1 de Janeiro de 1841, Diogo Cão (ou Caão) depois de viajar de S.Jorge da Mina pelo litoral do Golfo da Guiné, até ao Cabo de Sta. Catarina (actual Gabão), viaja a partir deste Cabo, de regresso a Portugal, mas em “volta de largo” pelo Golfo e descobre a ilha de Ano Bom (1 de Janeiro de 1481) a sudoeste da ilha do Príncipe.

Em nova viagem, Diogo Cão, saindo de Lisboa em 1482, provavelmente no mês de Agosto, e depois de reconhecer toda a costa desde o Cabo de Sta. Catarina, atinge o Rio Zaire (23 de Abril de 1483, dia de São Jorge) e implanta um Padrão de pedra, a que deu o nome de “S.Jorge”, na margem esquerda da foz desse rio – a que chamou Rio Poderoso –, que ficou conhecida como “Ponta do Padrão”. Foi o início do uso destes padrões em pedra calcária, para assinalar as terras a que chegavam os navegadores – anteriormente eram usadas cruzes de madeira.

Do Cabo de Sta. Catarina à foz do Rio Zaire...

Revelando que o rei D. João II já tinha informações sobre o que os navegadores poderiam encontrar no interior aficano, depois do Cabo de Sta. Catarina, Diogo Cão tinha instruções para enviar presentes ao “rei” de um potentado que existiria naquelas paragens, percebeu-se depois que seria o “reino” do Congo (ou mais correctamente Kôngo). Na verdade não se podem referir como “reis” os senhores destes “estados”, eles não tinham as prerrogativas que o termo – nas línguas e conceitos indoeuropeus – atribuem aos reis. Eram os chefes supremos de uma comunidade meio-feudal (no sentido arcaico do termo) de diversos outros chefes com menor poder. Mas foi assim que os portugueses os trataram sempre: “reis” e “reinos” os seus senhorios.

Segundo consta, Diogo Cão, em “conversa” com pescadores do rio, da qual não conseguimos descortinar como se entenderam (mas essa é a versão oficial) – para sermos claros nesta questão, não se consegue perceber como é que os portugueses chegaram à fala com pescadores kikongo, fazerem-se entender e conseguirem eles próprios entendê-los. Mas enfim... Conseguiu até contactar a “rainha” do Soyo (estado/senhorio da zona Sul da foz do Zaire, dependente do Kongo) e, de seguida enviou os tais presentes, por dois emissários ao “rei” do Kongo e largou para Sul, talvez no início de Julho de 1483. 

Foz do Rio Zaire

A "Ponta do Padrão"


Em 22 de Julho chegou à foz do rio Loge, a que chamou “Rio da Madalena”.

– 10 de Agosto, atingiu Benguela a Velha, actual Porto Amboim.

– A 28 de Agosto de 1483 atingiu o Cabo de Sta. Maria (actual Cabo do Lobo) onde mandou erguer o padrão de Stº. Agostinho, seguida de celebração de missa.

– Avançando mais quase 100 Km para Sul, a expedição terminou devido ao espesso nevoeiro, que não permitia a navegação de reconhecimento.


Padrão de Sto. Agostinho, na Sociedade Geográfica de Lisboa

Regressou à foz do Zaire, onde esperou encontrar os emissários enviados ao “rei” do Kongo. Não os encontrando, aprisionaram alguns nativos e iniciaram a viagem de regresso, em Novembro de 1483. Viagem para Portugal ou... para oeste até descobrir o Brasil?

Acrescentemos só que a chegada a Portugal se deu em Março/Abril de 1484.

NOTA: As fotos de satélite com os percursos desenhados e os mapas constantes neste post, foram colhidos do site:

A SEGUIR – A 2ª VIAGEM DE DIOGO CÃO

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sexta-feira, 26 de setembro de 2014

PREÂMBULO – PARA UMA HISTÓRIA DE ANGOLA (PARTE 2)

PREÂMBULO
PARA UMA HISTÓRIA DE ANGOLA 
(PARTE 2)


Quando o rei D.João II de Portugal tomou conta das viagens de descoberta oceânica, em 1474, retornando assim essas viagens à responsabilidade do Estado, depois da “gerência” de um comerciante “privado”, Fernão Gomes – a seguir à morte do Infante D. Henrique, em 1460 –, já a costa do Golfo da Guiné tinha sido explorada até ao Cabo Lopo Gonçalves (nome do descobridor e actual Cabo Lopez, no Gabão), a sul do Equador, no ano anterior. D.João II adoptou uma filosofia diferente na política de gestão dos descobrimentos, dando alguma precedência aos contactos com as populações dos territórios abordados/descobertos pelos navegadores portugueses, que até aí não conheciam quase nada do que se passava no “interland” das costas marítimas que abordavam. Claro que esses contactos tinham em vista encontrar a proveniência do ouro que chegava às cidades do Mediterrâneo, por meio dos berbéres e que, desde o Infante D. Henrique era o mote daquelas viagens – misturado com o interesse em encontrar produtos e parceiros para trocas comerciais e também, uma genuina curiosidade em “descobrir novas terras”.


A proveniência do ouro que o Infante procurava, pareceu ter sido encontrada após a descoberta do Cabo Branco, na ponta Norte do Golfo de Arguim (actual Mauritânia) onde, na ilha que dá o nome ao Golfo, foi construída uma feitoria-fortaleza entre 1445 e 1464. Esta era uma zona costeira semi-desértica mas onde, no limite sul do deserto do Saara (o denominado “Sahel”), confinando com as margens do Rio Níger, reinava o “Senhor do Ouro”, num senhorio originado em volta da cidade de Koumbi Saleh. O nome deste senhorio, em língua fula, seria ”Gine”, ou “Gana”, a que os portugueses chamariam Guinea, ou Guiné. A partir daí, toda a costa africana até ao actual Gabão, teria este nome – Golfo da Guiné. Mas o “senhorio” ou “império” do Gana – cerca de 300 a 1240 –, quando os portugueses chegaram a Arguim, já tinha mudado de donos (embora mantendo tradicionalmente o mesmo nome), substituidos por novos Senhores, agora do Mali (os Malinqués de Timbuktu), já muçulmanizados – este “império” durou desde cerca de 1240 a 1600 – atingindo a costa do Atlântico e expandindo-se pelo curso superior do Níger. (Ver mapa abaixo).

Clicar em cima do mapa para ampliar.

O Golfo da Guiné seria, mais tarde, designado por Costa dos Escravos (do início do século XVII, ao século XIX), já sob custódia britânica, devido ao comércio esclavagista, para alimentar a “mão de obra” das grandes plantações do Sul da colónia americana da coroa inglesa. Claro que os portugueses também se dedicaram a este “comércio” no dito Golfo, mas mais especialmente depois, a partir de Angola, para alimentarem as suas plantações nas terras do Brasil. Dedicaremos um capítulo específico deste Preâmbulo ao “comércio” esclavagista em África, dada a importância que teve, especialmente no apresamento e transferências forçadas (sempre em condições infra-humanas) de populações entre as duas margens do Oceano Atlântico, no sentido África-Américas – e não só. Acontece que o Golfo da Guiné era uma região densamente povoada, ao contrário da costa até aí alcançada pelos portugueses.

Existiam várias “cidades estado” e estados mais complexos, como o “reino” do Daomé e mais tarde do Benim. Evidentemente, os escravos que os senhores desses “reinos” vendiam aos portugueses, eram produto das guerras locais (que não vale a pena estarmos aqui a descrever), que os comerciantes europeus incentivariam, comprando escravos pagos em armas europeias... Enfim, nada que não conhecessemos já da História da própria Europa em tempos mais recuados.

Mas voltemos a D.João II. O rei começou por mandar construir uma fortaleza, designada por Castelo da Mina, depois S. Jorge da Mina, no actual Gana (que apesar do nome não tem nada a ver com o “Gana” de que falámos acima) – onde actualmente é conhecida por Elmina, na cidade que se desenvolveu a partir daquela fortaleza e que adoptou o mesmo nome. Aí era transaccionado o almejado ouro e... evidentemente, os escravos – mas também a pimenta, o marfim, goma, cera, azeite de palmeira e ovos de avestruz, etc... Mais tarde os ingleses chamariam ao Golfo da Guiné, Costa do Ouro (depois Costa dos Escravos, como dissemos anteriormente), quando se apoderaram do território, a partir do Séc. XVII. Os portugueses construiriam mais tarde algumas outras fortalezas no Golfo da Guiné – Sto. António em Axim, S. João Baptista d'Ajudá em Uidá, no actual Benim, etc...

Fotos acima: vistas da fortaleza de S. Jorge da Mina - na actualidade.

Contudo quando Diogo Cão, enviado por D.João II, chegou, em 23 de Abril 1483 [?], à foz do Rio Zaire (na má pronúncia portuguesa do termo em kikongo nzere ou nzadi – "o rio que traga todos os rios"), começou a escrever-se o que nos interessa: a Historia de Angola.

No entanto, dada a controvérsia que persiste [ainda] entre os historiadores portugueses sobre as viagens de Diogo Cão (ou Caão, ou Caam) – nomeadamente quanto a datas, ou a quantidade de viagens que realizou, admitindo mesmo alguns pesquisadores, que descobriu a ilha de Ascenção (no meio do Atlântico) e alcançou até o cabo de São Jorge no Brasil... Estas viagens têm que ser motivo do próximo capítulo deste Preâmbulo.

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quinta-feira, 11 de setembro de 2014

PREÂMBULO – PARA UMA HISTÓRIA DE ANGOLA (PARTE 1)

Mapa de Angola da época do Estado Novo - talvez dos anos de 1960...

PREÂMBULO
PARA UMA HISTÓRIA DE ANGOLA (PARTE 1)

Depois de ler o livro de Samuel Chiwale, Cruzei-me com a História, e de ter lido na Introdução deste livro a expressão do autor “o nosso querido País”, referindo-se obviamente a Angola, não pude deixar de me questionar qual é hoje a noção dos angolanos sobre como foi construído, o “querido País” deles. Sem querer sequer questionar o legítimo direito dos povos angolanos à Independência, é preciso que se comece por afirmar que tudo aquilo que “herdaram” em 1975 foi construido pelos portugueses! Não só a orgânica administrativa do território, que foi sendo desenhado e conquistado – já agora – nos cem anos anteriores à Independência, à mesa das secretarias de Lisboa e de negociações internacionais, como a Conferência de Berlim, em 1884/1885, onde foram estabelecidas as fronteiras que actualmente possui.

Se não tivesse havido a colonização portuguesa, Angola provavelmente nem existiria hoje como tal. Começando logo pelo nome do País, Angola deriva do título de um pequeno chefe local – o N’Gola, ou Ngola – da região de Luanda (Loanda originalmente), quando os portugueses fundaram a cidade em 25 de Janeiro de 1576 (há precisamente 438 anos) pelo fidalgo e explorador português Paulo Dias de Novais, com a designação de São Paulo da Assunção de Loanda. E depois, a língua portuguesa: Angola é uma amálgama de dez grupos liguísticos diferentes, sendo 9 de origem bantu, a que residualmente no Sul, se junta o khoisan. Acredito que, não fosse a língua portuguesa, ninguém se entenderia em Angola, ou quase...

Deparando, nas pesquisas que fui fazendo, com o incontornável vazio de uma qualquer “História de Angola” editada – apesar de haver em Angola historiadores e pesquisadores de elevada craveira, com obras parcelares relevantes publicadas, mas sem uma obra de síntese geral da História do país –, comecei a redigir este preâmbulo, destinado aos interessados em Portugal, para incluir (numa versão obviamente mais reduzida) no livro sobre a Retirada do Exército Português do Leste de Angola – 1975. Isto porque penso ser necessário perceber-se o que se passou “antes”, para se entender o que se passou “depois”...
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OS POVOS BOSQUÍMANOS E HOTENTOTES

Khoisan ou Khoi-San (também grafado como coisã, ou coissã) é a designação unificadora de dois grupos étnicos existentes no sudoeste de África, que partilham algumas características físicas e linguísticas distintas da maioria bantu. Esses dois grupos são os san, também conhecidos por bosquímanos ou boximanes e que são caçadores-coletores, e os khoikhoi, que são pastores e que foram chamados hotentotes pelos colonizadores europeus. Aparentemente, estes povos têm uma longa história, estimada em vários milhares (talvez dezenas de milhares) de anos, mas que actualmente estão reduzidos a pequenas populações, localizadas principalmente no deserto do Kalahari, na Namíbia, mas também no Botsuana e em Angola.

Os khoikhoi e os san actuais serão, tudo leva a crer, descendentes de povos caçadores-colectores que habitavam toda a África Austral e que desapareceram com a chegada dos bantu a esta região, há cerca de 2.000 anos. Não é provável que os bantu tenham exterminado os khoikhoi e os san, uma vez que algumas das suas características linguísticas e físicas foram assimiladas por vários grupos bantu, como no caso dos xhosas e dos zulus. É mais provável que a redução do seu território de caça, derivado da instalação dos agricultores bantu, tivesse sido uma causa para a redução do seu número e da sua área habitada. Até à instalação dos holandeses na África do Sul, há cerca de 200 anos, estes povos ainda povoavam grandes extensões da Namíbia e do actual Botswana.

Estes colonos [holandeses] designaram os khoikhoi por hotentotes – que significa "gagos" na língua neerlandesa, provavelmente devido à sua língua peculiar. Os san foram por muito tempo designados bosquímanos ou seja "homens do mato", termo emprestado de bushman em inglês.

Hoje em dia há uma população san significativa na Namíbia onde a sua língua tem um estatuto oficial, sendo utilizada no ensino até ao nível universitário. Comunidades menores existem também no Botsuana e no sul de Angola.

Fisicamente, os khoisan são em média mais baixos e esguios que os restantes povos africanos. Além disso, possuem uma coloração de pele amarelada e prega epicântica nos olhos, como os chineses e outros povos do Extremo Oriente. Algumas destas características são agora comuns a outros grupos étnicos sul-africanos, devido à miscigenação, sendo patentes por exemplo na fisionomia de Nelson Mandela.

Uma outra característica física dos khoisan é a esteatopigia das mulheres (grande desenvolvimento posterior das nádegas), que levou a que uma mulher tivesse sido levada para a Europa no século XIX e usada para exibição em feiras, a famosa Vénus Hotentote.

Mulher khoisan - imagem publicada na Europa em 1811

Os khoisan possuem o mais elevado grau de diversidade do ADN mitocondrial de todas as populações humanas, o que indica que eles são uma das mais antigas comunidades humanas. O seu cromossoma Y também sugere que, do ponto de vista evolucionário, os khoisan se encontram muito perto da raiz da espécie humana.

De acordo com um estudo genético autossomico de 2012, os khoisan podem ser divididos em dois grupos, correspondentes às regiões noroeste e sudeste do Kalahari, os quais se separaram por volta dos últimos 30.000 anos. Todos os indíviduos testados na amostra apresentaram ancestralidades de populações não-khoisan, que foram introduzidas no período de 1.200 anos atrás, como resultado da expansão bantu. Além disso, os hadzas, um grupo de caçadores-coletores do Leste da África, que também utilizam uma língua baseada em cliques (como a dos khoisan), possuem um quarto de sua ancestralidade vindos de uma população relacionada com os khoisan, revelando uma ligação genética antiga entre o Sul da África e o Leste da África. Ou seja, as populações khoisan de Angola e da Namíbia ter-se-iam separado das da África do Sul entre 25.000 e 40.000 anos atrás.

OS POVOS BANTU

Bantu ou banto (forma preferível a bantus) constituem um grupo etnolinguístico localizado principalmente na África subsariana e que engloba cerca de 400 subgrupos étnicos diferentes. A unidade desse grupo, contudo, aparece de maneira mais clara no âmbito linguístico, uma vez que essas centenas de subgrupos têm como língua materna uma língua da família bantu.

Os bantu são provavelmente originários dos Camarões e do sudeste da Nigéria [talvez do delta do rio Níger]. Por volta de 2.000 a.C., começaram a expandir o seu território na floresta equatorial da África central, provavelmente impelidos pela desertificação do Sahara, e pela consequente pressão dos saharauis que emigraram para aquela região, eles foram forçados a espalhar-se pelas florestas tropicais da África central.

Mais tarde, por volta do ano 1.000 a.C., ocorreu uma segunda fase de expansão mais rápida, para o leste, e finalmente uma terceira fase, já nos primeiros 500 anos da era actual, em direção ao sul do continente, quando os bantu se miscigenaram com os precedentes e com outros povos, constituindo novas sociedades.

As fases de deslocação dos bantu

DISTRIBUIÇÃO GEOGRÁFICA 

Os bantu distribuem-se, no continente africano, no sentido oeste-leste, desde os Camarões e o Gabão às ilhas Comores; no sentido norte-sul, do Sudão à África do Sul, cobrindo toda a parte meridional da África, onde somente os bosquímanos e os hotentotes têm línguas de origens diferentes.

Enquanto os bosquímanos e hotentotes eram nómadas caçadores-colectores e pastores, os bantu eram agricultores sedentários e já conheciam o uso do ferro. Esses avanços permitiram- lhes colonizar um amplo território, ao longo de aproximadamente quatro mil anos, forçando o recuo dos povos nomadas. No entanto, os bantu absorveram alguns fenómenos linguísticos típicos das línguas khoisan.

Embora não existam informações precisas, o subgrupo etnolinguístico bantu mais numeroso parece ser o zulu. A língua zulu é a mais falada na África do Sul, onde é uma das 11 línguas oficiais. Mais da metade dos 50 milhões de habitantes daquele país é capaz de compreendê-la; mais de 9 milhões de pessoas têm o zulu como língua materna, e mais de 15 milhões falam o zulu fluentemente.

Todos os subgrupos étnicos falam línguas pertencentes à mesma família linguística, a das línguas bantas, a qual, por sua vez pertence à família linguística nígero-congolesa. Em muitos casos, esses subgrupos têm costumes comuns.


EM ANGOLA 

Na Lunda, no Zaire e no Cuangar foram encontrados instrumentos de pedra e outros, dos homens do Paleolítico. No Deserto do Namibe foram encontradas gravuras rupestres nas rochas. Trata-se das gravuras do Tchitundo-Hulo, atribuídas aos antepassados dos san.

Como vimos atrás, nos primeiros quinhentos anos da era actual, as populações bantu da África Central, que já dominavam a siderurgia do ferro, iniciaram uma série de migrações para sul, a que se chamou a grande expansão bantu. Parte destas populações fixaram-se a Norte e a Sul da parte inferior do Zaire (a palavra Zaire é o resultado de uma má pronúncia dos portugueses quando lá chegaram, do termo kikongo nzere ou nzadi "o rio que traga todos os rios"), portanto também no Noroeste do território da actual Angola. Com o tempo, estas populações constituíram o povo Bakongo, de língua Kikongo. Outras populações fixaram-se inicialmente na região dos Grandes Lagos Africanos e, no século XVII, deslocaram-se para oeste, atravessando o Alto Zambeze até ao Cunene: eram os grupos hoje designados como ngangela, mas também os Ovambo e os Xindonga.

No ano de 1568, entrava um novo grupo pelo norte, os jagas, que combateram os Bakongo que os empurraram para sul, para a região de Kassanje. No século XVI ou mesmo antes, os nhanecas (vanyaneka) entraram pelo sul de Angola, atravessaram o Cunene e instalaram-se no planalto da Huíla.

No mesmo século XVI, um outro povo abandonava a sua terra na região dos Grandes Lagos, no centro de África, e veio também para as terras angolanas. Eram os hereros (ou ovahelelos), um povo de pastores. Os hereros entraram pelo extremo leste de Angola, atravessaram o planalto do Bié e depois foram-se instalar entre o Deserto do Namibe e a Serra da Chela, no sudoeste angolano.

Também no século XV chegam, por via marítima os portugueses que, já no século seguinte se instalam na região e fundam São Paulo da Assunção de Loanda, a actual cidade de Luanda [veremos esta fase com mais detalhe na parte 2 deste texto].

Já no século XVIII, entraram os ovambos (ou ambós), grandes técnicos na arte de trabalhar o ferro, deixaram a sua região de origem no baixo Cubango e vieram estabelecer-se entre o alto Cubango e o Cunene. No mesmo século, os quiocos (ou kyokos) abandonaram o Catanga e atravessaram o rio Cassai. Instalaram-se inicialmente na Lunda, no nordeste de Angola, migrando depois para sul.

Finalmente, já no século XIX apareceu o último povo que veio instalar-se em Angola: os cuangares (ou ovakwangali). Estes vieram do Orange, na África do Sul, em 1840, chefiados por Sebituane, e foram instalar-se primeiro no Alto Zambeze. Então chamavam-se macocolos. Do Alto Zambeze alguns passaram para o Cuangar no extremo sudoeste angolano, onde estão hoje, entre os rios Cubango e Cuando.

As guerras entre estes povos eram frequentes. Os migrantes mais tardios eram obrigados a combater os que estavam estabelecidos para lhes conquistar terras. Para se defenderem, os povos construíam muralhas em volta das sanzalas. Por isso, há em Angola muitas ruínas de antigas muralhas de pedra. Essas muralhas são mais abundantes no planalto do Bié e no planalto da Huíla, onde se encontram, também, túmulos de pedra e galerias de exploração de minério, testemunhos de civilizações mais avançadas do que geralmente se supõe.

Distribuição dos actuais grupos linguísticos em Angola

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quarta-feira, 10 de setembro de 2014

TEXTO DE SAMUEL CHIWALE, O COMANDANTE RESPONSÁVEL PELO ASSALTO DA UNITA AO BART 6221/74 – NA SUA BIOGRAFIA PUBLICADA EM 2008


Jonas Savimbi, M. N'Zau Puna e Samuel Chiwale

TEXTO DE SAMUEL CHIWALE, 
O COMANDANTE RESPONSÁVEL 
PELO ASSALTO DA UNITA 
AO BART 6221/74
NA SUA BIOGRAFIA PUBLICADA EM 2008

José Samuel Chiwale, o comandante responsável pelo assalto da UNITA ao BART 6221/74, nas viagens (auto e comboio) entre Luso e Nova Lisboa, escreveu a sua biografia – CRUZEI-ME COM A HISTÓRIA –, que foi publicada pela editora portuguesa Sextante em 2008. Li o livro do Chiwale (que é agora um “senhor” deputado da UNITA no “parlamento” angolano) e como, no Capítulo 5, começando por evocar os combates no Luso da UNITA contra o MPLA [ou vice-versa], o homem relata de seguida os acontecimentos relacionados com esse assalto ao nosso comboio (sem considerar nunca que se tratou de um assalto...), é interessante compararmos o que ele escreveu, com o Relatório do Comandante do BART 6221/74, que já aqui publicámos. Isto porque, lidos os dois relatos, parece que estamos a ver “filmes” diferentes... Mas os homens do BART 6221/74, lembram-se perfeitamente deste episódio traumático da sua juventude “ao serviço da nação” e sabem que aquilo está tudo escrito numa prosa “embelezada” ao sabor da memória e a favor deles (UNITA), com o intuito de apresentar “músculo” e achincalhar os militares portugueses que lá estiveram. Shiwale também refere que os militares portugueses “foram desarmados e despidos” (ele escreve que isso [o despidos] foi lamentável), embora esses episódios, pelo que tenho apurado até agora, se refiram apenas a meia dúzia de casos isolados, que abordarei em texto específico neste blogue noutra altura, assim como a célebre "Operação Madeira" em que a UNITA colaborou com o Exército Português e com a PIDE contra o MPLA, pouco antes do 25 de Abril...
Vejamos então a parte que nos diz respeito do tal Capítulo (o 5º) do livro de Samuel Chiwale: 


CRUZEI-ME COM A HISTÓRIA 
José Samuel Chiwale 
Sextante Editora, Lisboa, 2008 


Em Julho de 1975, depois de provocações em todo o país, reben­tou a guerra civil em Angola: os combates iniciaram-se de uma forma mais declarada em Luanda, entre o MPLA e a FNLA, continuaram em Agosto, espalhando-se por todo o país. Bastava haver efectivos dessas organizações para haver faísca. Mas também, se bem que de modo esporádico, não éramos poupados: o massacre de cerca de 328 recrutas da UNITA, em Cassamba, foi o exemplo mais revelador.

Recordo-me de ter participado a ocorrência ao Dr. Savimbi e de lhe ter sugerido que deveríamos retaliar; não era justo que cente­nas de pessoas fossem mortas como animais. Na sua comunicação, o Dr. Savimbi dizia:

– Convém não reagirem e procurem dialogar para evitar o pior; o diálogo é, neste momento, a arma que vocês devem utilizar na frente leste para evitarem que a situação se deteriore. Vamos continuar a bater-nos pela reunificação dos três movimentos.

Não tardou que as palavras do Dr. Savimbi fizessem eco na mi­nha cabeça: «Depois de acabarem com a FNLA seremos nós.» Efecti­vamente, de nada valeram os seus discursos para não enveredarmos pela guerra. O mais caricato é que o MPLA, num tom pejorativo, pas­sara a apelidá-lo de «Profeta da Paz». Mesmo assim, o Dr. Savimbi in­sistia, na vã tentativa de evitar que o país caísse no caos, até que se deu o inaceitável, que nos forçou a rever as nossas posições.

No dia 3 de Agosto de 1975, o Dr. Savimbi dirigia-se para o aero­porto de Silva Porto (Bié) com a intenção de viajar para a Zâmbia. Tinha na agenda um ponto para analisar com os presidentes dos países da linha da frente referente à criação de outros mecanismos para se inviabilizar o recurso à guerra e se realizarem as eleições conforme o previsto em Alvor. Nenhum de nós desconfiava que fora delineado um atentado contra ele nesse dia; assim que o avião «Muangai» procurou descolar do aeroporto do Bié, lançaram uns mísseis contra ele. Só não aconteceu o pior por milagre.

Realmente, o ataque ao avião era apenas o prelúdio do que veio a acontecer nos dias subsequentes e ainda mais: vimo-nos, do dia para a noite, no meio de um fogo cruzado. Assim, em Luanda éra­mos acossados pelo MPLA, juntamente com as forças cubanas; no norte (Uíje e Zaire) e mais a sul, pelas forças da FNLA. Estas ti­nham ali uma composição diversificada: contavam, para além de sul-africanos, com o ELP (Exército de Libertação de Portugal).

Reunimo-nos com urgência. Nesse encontro, onde a revolta se acasalara com a frustração, porque o pior já estava a acontecer, o Dr. Savimbi tomou a palavra e disse:

– Não queria que nos envolvêssemos nesta guerra, porque ela vai ser longa e dolorosa e o Povo deste país irá sofrer muito. Fizemos tudo por tudo para unir os três movimentos; fizemos tudo por tudo para se evitar uma guerra em que não nos queríamos meter, mas quando já nos tentam assassinar não temos outra alternativa senão autodefendermo-nos para salvaguardarmos as vidas e a causa.

Foi desta forma que a UNITA entrou numa guerra que, inicial­mente, era entre o MPLA e a FNLA.


Encontrava-me nesse momento na frente Leste, acompanhan­do a situação. Da parte do MPLA estavam os comandantes Dangereux e Dack Doy. À tarde tínhamos briefings regulares.

Naquele remoto dia 15 de Agosto [de 1975] estava com eles na minha casa, procurando a estratégia a utilizar para, conforme se dizia, pacificarmos a área.

– Camarada Chiwale! – Dangereux procurava sossegar-me. – Vamos fazer o impossível para manter o Leste livre das escara­muças. Foi por isso que viemos cá, a sua casa, a fim de lhe garantir­mos que o Leste é uma região de paz.

Estávamos na sala de estar, com Dangereux e Dack Doy senta­dos em frente de mim. Notei que o primeiro tinha consigo uma garrafa de champanhe.

– Vai um gole? Temos aqui copos? – convidou.

– Camarada Dangereux, podemos beber o champanhe, mas eu queria dizer-lhe que tenho informações fidedignas de que entraram hoje, às quatro horas da madrugada, 28 viaturas vindas de Henrique de Carvalho, abarrotadas de catangueses armados até aos dentes.

– Mas, camarada Chiwale – procurou novamente sossegar-me –, você não vê mesmo que isso que está a dizer não faz sentido? Como é que estaríamos aqui, na sua casa, se a nossa intenção fosse atacá-lo? Para isso convidá-lo-íamos para as nossas instalações ou para o quartel-general e dávamos lá o golpe de misericórdia. Peguem lá nos vossos copos para brindarmos à amizade existente entre o coman­do do MPLA e o da UNITA, da frente Leste.

Momentos depois, o ambiente tornara-se mais desanuviado e passámos para o whisky acompanhado de um churrasco. Às dezoi­to horas, despedimo-nos com a promessa de que o Leste seria um oásis naquele deserto de pólvora.

Não se tinha passado sequer uma hora quando um morteiro explodiu ao lado da minha residência. As minhas suspeitas confir­mavam-se: eles tinham estado ali não só para me espiar mas também para descobrirem a minha estratégia de ataque ou de defesa, e não se haviam apercebido de nada, por me subestimarem como adver­sário: dias antes eu organizara, no bairro periférico do Sangondo, um cordão de segurança, baseado numa forte estrutura militar sob o comando do major Severino, coadjuvado por outros militares, já míticos, como o Cazumbuela, o Cacoma, o Jolomba, o Cufuna e ou­tros. A minha segurança à volta do bairro Esteves (Ferrovia) tam­bém fora reforçada.

Foi desta forma tão inusitada que, no dia 15 de Agosto, começa­ram as confrontações no leste de Angola e – digo-o à boca cheia – graças ao meu sexto sentido pude escapar da armadilha de Dangereux e Dack Doy.

O fogo começou; respondíamos de modo incisivo e musculado: assim que um morteiro explodia dentro das nossas posições, dirigía­mos para o local dez obuses. Pretendíamos neutralizar as forças do MPLA a partir do BTR, que era o quartel-general das tropas portuguesas, situado na margem direita do rio Luena.

O poder do fogo foi-se intensificando em ambos os lados atin­gindo proporções jamais vistas na minha vida de guerrilheiro: os combates prosseguiram durante a noite; às seis da manhã tínha­mos conquistado a zona do aeroporto, o bairro Ferrovia, o Sakatundo, ou seja, toda a periferia da cidade do Luso. As tropas do MPLA haviam ficado apenas com a área do palácio e o quartel dos coman­dos, ainda por concluir.

Às onze e meia, quando íamos aplicar o golpe derradeiro para os escorraçar definitivamente da cidade, descobrimo-nos sem mu­nições. O mesmo deve ter-se passado com eles, uma vez que das po­sições onde estávamos víamos as FAPLA a ser reabastecidas pela tropa colonial [portuguesa], que ainda ali estava. Então eu fiz o que, na altura, me pareceu mais lógico: assim que os soldados do MPLA viram supri­das as suas necessidades em munições, bombas e granadas, mandei alguns dos meus homens com o mesmo propósito. Foi em vão.

Às quinze horas, forçado pelas circunstâncias, ordenei à tropa que batêssemos em retirada até à localidade de Chicala. Tratava-se de um recuo estratégico com os meus cinco mil homens dos quais, infelizmente, apenas três mil estavam armados, contrastando com as forças do MPLA, sobretudo dos catangueses.

* 

Muito antes das confrontações soubemos que o exército portu­guês, juntamente com os colonos do Luso, se iriam retirar para Por­tugal, pela via do Huambo. Daí, planeámos assaltar o comboio na Chicala, a não ser, disse aos meus homens, que construíssem outro caminho-de-ferro; mas se o comboio passasse pela Chicala, Cachipoque, Cangumbe, Cangonga, Munhango, Cuemba, até à ponte do rio Cuanza, então eles teriam que se haver connosco. Seguramente, era uma forma de os fazer pagar pela parcialidade nos combates do Luso.

No dia 24 de Agosto, o comboio-mala deixou aquela localidade em direcção à Chicala, onde chegou às 18 horas. Trazia consigo a maior parte dos efectivos da tropa colonial à excepção dos comu­nistas que permaneciam ali em socorro das FAPLA. Também transportava munições, bombas de morteiro 40, 60 e 81 mm, rockets, bazucas, minas antipessoal e antitanque; era mesmo do que precisávamos para inverter a situação da guerra no Leste.

Assim que o comboio accionou os freios, viu-se completamente cercado. Avancei, resoluto, para o seu interior, abordando o oficial responsável, de quem já não me recordo o nome.

Depois de o saudar à boa maneira militar, disse-lhe:

– Senhor coronel, preciso de armamento.

– Que armamento? – respondeu exaltado. – O senhor não sabe que este armamento pertence ao exército português e ao exigi-lo está a violar os Acordos do Alvor?

Visivelmente nervoso, ripostei:

– Não me venha agora com os Acordos do Alvor. Eu necessito de material e ponto final, e falando de violações, não tenho nada a dizer senão lamentar a vossa atitude na cidade ao fornecerem ar­mas às tropas do MPLA. Portanto, vamos pôr de lado os Acordos do Alvor e dê-me as armas, pois tenho que voltar para o Luso para retomar as posições que perdi.

O coronel, ao ver que as nossas posições se extremavam, chamou o padre Oliveira, nosso conhecido, pois fora ele quem, em 1974, viabilizara o primeiro encontro que tivemos com o Movimen­to das Forças Armadas, na base do qual se assinou o cessar-fogo. O padre saiu em sua defesa, defendendo os mesmos pontos de vis­ta, aos quais retorqui:

– Sempre respeitei o senhor padre, por tudo o que fez para o entendimento da UNITA com o Movimento das Forças Armadas, mas agora gostaria imenso que compreendesse que há uma necessi­dade extrema em satisfazer as necessidades dos angolanos. O padre Oliveira está a partir para Portugal, para a sua pátria. Eu não tenho outra pátria senão esta pela qual estou a lutar e se não o fizer corro o risco, assim como os meus homens e o meu povo, de desapare­cer. Gostaria que o senhor padre me entendesse não só como ho­mem, mas também em nome de Deus. Não é Ele que diz que se deve saciar os carentes? Estou carente de armas. Peço-lhe que compreen­da isso.

– Mas isso não pode ser, comandante! - exclamou. - Isto é um assalto.

– Gostaria – ignorando-o – que o padre Oliveira me entendes­se também. É que o senhor nem sequer deveria ir a Portugal. O seu lugar é aqui, as suas ovelhas estão aqui e foi aqui que o senhor pa­dre fez um trabalho excepcional para este povo. Vai deixá-lo assim sem mais nem menos? E mesmo que o faça acredito que um dia há-de voltar, mas isso só será possível com a UNITA no poder, pois es­ses que vocês apoiaram com armas e munições, se vierem a tomar o poder, a primeira coisa que farão é combater a igreja. Então, acho que estão de acordo em que eu posso retirar o material do comboio.

– Não chegámos a acordo nenhum – interveio o coronel –, aliás, o padre Oliveira disse-lhe o mesmo que eu. Será que não en­tende?

– Bem, se não vai a bem vai a mal. Vou chamar os meus ho­mens e olhe que são cinco mil e vamos tomar o comboio de assalto. E para já, senhor coronel, dê-me a sua pistola, vamos – estendi-lhe as mãos.

O que se passou de seguida foi caótico: os soldados portugue­ses, com a intenção de nos amedrontarem, começaram a disparar para o ar, mas quando viram cerca de quatro mil homens a corre­rem em direcção ao comboio ficaram todos quietos.

Foi assim que nos apossámos do comboio: a quantidade de ma­terial era surpreendente, passámos toda a noite a descarregar e às cinco horas da madrugada ordenei que o comboio partisse. Tinha orientado os meus homens para que se fizesse o mesmo nas outras estações, ou seja, em Cachipoque e Cangumbe a fim de o esvaziar por completo.

As coisas no Cangumbe, como acontece frequentemente nes­tas situações, não correram lá muito bem: alguns dos nossos homens insurgiram-se contra a tropa e os colonos que iam no comboio; agre­diram-nos chegando mesmo ao ponto de os despir, o que foi real­mente lamentável.

De seguida, o comboio foi deixando o resto do material em Cangonga, Munhango, Cuemba e, ao atravessar o rio Cuanza, ficou completamente vazio. Foi com essas armas que conseguimos alte­rar o teatro de guerra na frente leste, centro e sul. Na verdade, não era pouco armamento: G3, morteiros, antiaéreas em grandes quan­tidades. Deparámo-nos com algum material desconhecido; felizmen­te, tínhamos soldados oriundos do exército colonial português, que nos instruíram sobre o seu manejo.

No dia seguinte, às nove horas da manhã, vimos um avião de reconhecimento a rasgar os céus. Saudámo-lo com uma salva de fogo das antiaéreas capturadas. Os seus ocupantes devem ter ficado surpreendidos, pois o avião deu meia-volta e desapareceu no firmamento.

Entretanto, as coisas tiveram outros desenvolvimentos: a mi­nha acção foi objecto de uma reacção violenta por parte do coronel do Movimento das Forças Armadas no Huambo, que acabava de chegar de Moçambique. Abordou o secretário-geral, Miguel N'Zau Puna, nos seguintes termos:

– O vosso comandante Chiwale e os seus homens desarma­ram a composição que vinha do Luso para cá e, veja só, como se não bastasse, tiveram o desplante de despirem os seus ocupantes. Não aceitamos humilhações desta natureza e por isso vim adverti-lo, ao senhor que é responsável pela cidade do Huambo, de que vamos re­taliar e você vai arcar com as consequências.

– Se vocês querem retaliar – respondeu N'Zau Puna – então vão ao Luso onde está o homem que fez isso. Agora, se o querem fazer cá no Huambo, tenham muito cuidado que eu posso pôr a popula­ção desta cidade contra vocês, o que seria pior: não se esqueçam de que este povo ainda nutre muitos ressentimentos pelo passado e, como tal, a situação poderá tornar-se incontrolável. Sugiro, pois, que evitemos um banho de sangue.

O coronel, conforme soube mais tarde, achou por bem resignar-se. Informei, então, o Dr. Savimbi da ocorrência e do procedimento a seguir para a distribuição do material pelas outras unidades.


Pouco a pouco, o país entrava numa guerra sem precedentes, onde as várias forças e os seus aliados se digladiavam na tentativa de ocupar o maior território possível. Em Luanda, o MPLA refor­çara-se com milhares de soldados cubanos e centenas de técnicos da União Soviética, Alemanha Democrática e outros países do Les­te. No Sul, deparámo-nos com uma força cujos objectivos e progra­ma político desconhecíamos: o ELP (Exército de Libertação de Portugal), ainda que estivesse ligado às forças de Daniel Chipenda (que se passara para a FNLA), não se sabia bem o que pretendia; os elementos que o compunham tinham pertencido ao exército colo­nial português e estavam refugiados no Sudoeste Africano (...)

Dirigentes da UNITA em TERRA LIVRE DE ANGOLA (Fevereiro de 1978)
Os dois à direita: Savimbi e Shiwale.


Shiwale actualmente...

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