Agostinho Neto (17/09/1922 - 10/09/1979) - Holden Roberto (12/01/1923 - 02/08/2007)
e Jonas Savimbi (03/08/1934 - 22/02/2002)
ANGOLA 1975/1976
NARRATIVA CRONOLÓGICA
IN ‘O JORNAL’ DE 7 DE JUNHO DE 1976
Mais um recorte d’O Jornal, que é uma (longa) síntese histórica daquilo que foram os acontecimentos em Angola, antes (indo até, por vezes, muito antes mesmo) da independência, mas que, infelizmente, guardei cortado em tiras (as colunas do texto coladas em papel A4), sem ter preservado o título e o nome do jornalista que o escreveu. É um texto longo, mas essencial para se perceber o que se passou no território angolano antes de 11 de Novembro 1975 e mesmo depois dessa data.
As fotos são da minha responsabilidade.
O Jornal, 7/5/1976
Entre 15 e 22 de Junho de 1975, como soubemos, realizou-se a Cimeira de Nakuru, no Quénia. Já falámos nas circunstâncias que possibilitaram esta Cimeira. Logo a seguir, os movimentos acordaram em comemorar a «semana da unidade», que consubstanciava o ambiente de «mea culpa» que se tinha vivido na Cimeira, e do qual, o conteúdo acordado é uma prova eloquente. Mas uma coisa são as bonitas declarações políticas, outras são as realidades, motores da evolução das situações. Mesmo após Nakuru, e apesar das declarações de intenções, (significativamente, sem a presença portuguesa), o território encontrava-se cada vez mais na posse dos movimentos. A linha de contenção da FNLA - Zaire estava melhor definida, mercê de uma estratégia político-militar do MPLA: Temos de considerar isso brilhante, em atenção ao esforço que foi necessário para o concretizar e os apoios externos que nessa altura dispunham as forças rivais, nomeadamente a FNLA.
Neste ambiente, era natural esperar que a FNLA aproveitasse a «paz política» pós-Nakuru para, em desespero, procurar impor-se o mais possível, segundo os seus métodos habituais. Era natural que a UNITA, buscasse manter ao transe uma situação que a favorecia, não se envolvendo em acontecimentos que surgissem, e era natural que o MPLA, com toda a sua implantação, pretendesse a situação clarificada, acabando-se de vez com os equívocos. De facto, se ao Norte a FNLA era «dona e senhora», se no planalto a UNITA (nomeadamente em Nova Lisboa) comandava as operações, então deveria ser reconhecido o poder do MPLA em Luanda. Mas... Luanda era o «centro» do problema e as presenças militares eram desproporcionais às implantações políticas ou às importâncias políticas, baseavam-se em factores irreais (caso da UNITA).
Aconteceu, assim, que a «semana de unidade» durou quatro dias, findos os quais estalaram novos incidentes, que uma vez mais fizeram com que a violência generalizada se estabelecesse na cidade. Surgem assim, mais desalojados, mais comunicados (alguns patéticos), mais raptos, mais prisões, mais mortos. Os tiros ecoam por toda a cidade e também mais uma vez a parte portuguesa se esforça por conter os acontecimentos e estabelecer o diálogo possível.
Nakuru tinha tido lugar em 22 de Junho de 1975: a «semana da unidade» havia durado 4 dias. Em Nakuru tinha-se inclusivamente acordado uma organização para as Forças Armadas angolanas diferente da acordada no Alvor. Era claro que, a desde sempre ambicionada plataforma política mínima não se concretizava, e que agora, já não se podia pensar em Forças Armadas angolanas. A situação ia, pois, continuar a deteriorar-se.
Assim, em 10 de Julho, durante uma cerimónia do arriar da bandeira da FNLA no bairro Marçal, aconteceu mais um incidente (dos muitos que já se verificavam), em que elementos do MPLA não se perfilaram durante a cerimónia. Estalam, assim os incidentes em Luanda. Na sequência dos quais Luanda vai ficar sem pão por uns tempos, devido a cortes de energia eléctrica na zona industrial do Cazenga. Por outro lado, o pessoal menor do Hospital Maria Pia entra em greve, ficando ainda mais agravado o problema da assistência hospitalar no Hospital Militar, pois o Hospital de S. Paulo encontra-se encerrado desde os incidentes de Junho.
A «limpeza» da FNLA
Mas voltemos à delegação da FNLA na Avenida do Brasil, em Luanda. Com o incidente acima descrito, e dada a importância (sobretudo militar) desta delegação, estão criadas condições para uma «limpeza» deste movimento e que efectivamente aconteceu em 11 de Julho feita pelo MPLA.
As fotos são da minha responsabilidade.
Entre 15 e 22 de Junho de 1975, como soubemos, realizou-se a Cimeira de Nakuru, no Quénia. Já falámos nas circunstâncias que possibilitaram esta Cimeira. Logo a seguir, os movimentos acordaram em comemorar a «semana da unidade», que consubstanciava o ambiente de «mea culpa» que se tinha vivido na Cimeira, e do qual, o conteúdo acordado é uma prova eloquente. Mas uma coisa são as bonitas declarações políticas, outras são as realidades, motores da evolução das situações. Mesmo após Nakuru, e apesar das declarações de intenções, (significativamente, sem a presença portuguesa), o território encontrava-se cada vez mais na posse dos movimentos. A linha de contenção da FNLA - Zaire estava melhor definida, mercê de uma estratégia político-militar do MPLA: Temos de considerar isso brilhante, em atenção ao esforço que foi necessário para o concretizar e os apoios externos que nessa altura dispunham as forças rivais, nomeadamente a FNLA.
Cimeira de Nakuru, no Quénia: Jonas Savimbi, Jomo Kenyatta (Presidente do Quénia), Holden Roberto e Agostinho Neto
Luanda, palco principal da «semana da Unidade», com toda a sua importância política, situava-se atrás dessa linha. E nesta cidade, com as casas da «zona do asfalto» a abarrotar de desalojados, com as concentrações frente ao Palácio e de angolanos, também desalojados que iniciavam um irreprimível movimento migratório interno, com um poder popular acrescido, agressivo e em grande parte descoordenado, a FNLA «flutuava» sem apoio das massas populares, e a UNITA crescia politicamente com base na etnia branca ou na burguesia negra que se alinhavam tacticamente a este movimento.
Neste ambiente, era natural esperar que a FNLA aproveitasse a «paz política» pós-Nakuru para, em desespero, procurar impor-se o mais possível, segundo os seus métodos habituais. Era natural que a UNITA, buscasse manter ao transe uma situação que a favorecia, não se envolvendo em acontecimentos que surgissem, e era natural que o MPLA, com toda a sua implantação, pretendesse a situação clarificada, acabando-se de vez com os equívocos. De facto, se ao Norte a FNLA era «dona e senhora», se no planalto a UNITA (nomeadamente em Nova Lisboa) comandava as operações, então deveria ser reconhecido o poder do MPLA em Luanda. Mas... Luanda era o «centro» do problema e as presenças militares eram desproporcionais às implantações políticas ou às importâncias políticas, baseavam-se em factores irreais (caso da UNITA).
Aconteceu, assim, que a «semana de unidade» durou quatro dias, findos os quais estalaram novos incidentes, que uma vez mais fizeram com que a violência generalizada se estabelecesse na cidade. Surgem assim, mais desalojados, mais comunicados (alguns patéticos), mais raptos, mais prisões, mais mortos. Os tiros ecoam por toda a cidade e também mais uma vez a parte portuguesa se esforça por conter os acontecimentos e estabelecer o diálogo possível.
Nakuru tinha tido lugar em 22 de Junho de 1975: a «semana da unidade» havia durado 4 dias. Em Nakuru tinha-se inclusivamente acordado uma organização para as Forças Armadas angolanas diferente da acordada no Alvor. Era claro que, a desde sempre ambicionada plataforma política mínima não se concretizava, e que agora, já não se podia pensar em Forças Armadas angolanas. A situação ia, pois, continuar a deteriorar-se.
Assim, em 10 de Julho, durante uma cerimónia do arriar da bandeira da FNLA no bairro Marçal, aconteceu mais um incidente (dos muitos que já se verificavam), em que elementos do MPLA não se perfilaram durante a cerimónia. Estalam, assim os incidentes em Luanda. Na sequência dos quais Luanda vai ficar sem pão por uns tempos, devido a cortes de energia eléctrica na zona industrial do Cazenga. Por outro lado, o pessoal menor do Hospital Maria Pia entra em greve, ficando ainda mais agravado o problema da assistência hospitalar no Hospital Militar, pois o Hospital de S. Paulo encontra-se encerrado desde os incidentes de Junho.
A «limpeza» da FNLA
Mas voltemos à delegação da FNLA na Avenida do Brasil, em Luanda. Com o incidente acima descrito, e dada a importância (sobretudo militar) desta delegação, estão criadas condições para uma «limpeza» deste movimento e que efectivamente aconteceu em 11 de Julho feita pelo MPLA.
Em 12 de Julho a Comissão Nacional de Defesa reúne, mas o MPLA não aparece. Desta reunião sairá um comunicado responsabilizando o MPLA pelo que está a acontecer. Então, perante as derrotas que começam a sofrer no terreno, a FNLA acusa as Forças Armadas Portuguesas de estarem ao lado do MPLA.
Mas a questão era fundamentalmente entre os movimentos. Assim, ainda se consegue uma reunião entre a FNLA e o MPLA, em que este último, em posição de relativa força, impõe as condições para a desmilitarização de Luanda. Só que, dada a implantação popular do MPLA, isto significava o seu total poder na cidade. Como anular o poder popular? Como desarmá-lo? Como aceitaria a FNLA reconhecer esta real implantação? Evidentemente que não a reconhece e vai tentar manter a sua presença ao máximo.
Entretanto, no restante território, concretizava-se cada vez mais a linha de contenção militar da FNLA-Zaire, ao Norte. Atrás desta linha situava-se Luanda, a capital política do país. Sentia-se portanto que, caso surgissem novos problemas, o MPLA tentaria resolver definitivamente a questão, em vez de se continuar com paleativos.
Em 14 de Julho, no entanto, o ministro Melo Antunes, perante o agudizar da situação, desloca-se novamente a Luanda, tendo conseguido reunir-se com os três movimentos separadamente, no sentido de se tentar acalmar a situação e procurar uma solução. Em 16 de Julho a situação é efectivamente mais calma e em 17 de Julho a Comissão Nacional de Defesa, que tinha funcionado razoavelmente ao longo da sua existência, reuniu completa, pela última vez. Finalmente a FNLA sofre uma estrondosa derrota, acabando por resumir a sua presença militar ao Forte de S. Pedro, próximo da refinaria de Luanda e dos seus tanques de combustível. Também no Bairro do Saneamento, se mantinha a presença da FNLA – nas residências dos seus ministros, que estavam superlotadas de pessoal armado – 200 pessoas numa moradia segundo se apurou mais tarde.
Nesta circunstância e por parte da FNLA, só praticamente o ministro do Interior, Kabangu, se mostra à altura da situação, demonstrando a coragem e a arrogância de sempre. Os outros, já se haviam refugiado no Zaire e em «zonas seguras» e um raptou-se a si próprio quando viu que ia servir de «bode expiatório». Nestas circunstâncias a FNLA pretende por todos os meios recuperar posições perdidas, tentando reunir-se com os outros movimentos e com Portugal. Põe-se então às forças portuguesas o problema de evacuar ou não Carmona, S. Salvador e Negage, no Norte do País. Evacuar seria contribuir para um maior êxodo da população e acentuar ainda mais a «balcanização» do território. Não abandonar seria deixar nessas zonas, por um período necessariamente curto, um número elevado de «reféns» que poderiam ser utilizados como forma de pressão em relação ao que estava a acontecer em Luanda.
INCIDENTE DE VILA ALICE
Ainda a 25 de Julho acontece o célebre incidente da Vila Alice. Depois de desarmados por elementos das FAPLA, militares portugueses utilizando jeeps das FAP, haviam sido feridos gravemente, tendo sido alvejados pelas costas. E dado ao M PLA um prazo para entrega dos responsáveis. O prazo não é cumprido tendo sido prorrogado por duas horas. Então, na Vila Alice, é montado um dispositivo militar aparatoso que cerca a delegação do MPLA, tendo sido pedida a entrega dos responsáveis. No decurso das conversações que decorriam entre o comandante da nossa força e o representante do MPLA, desencadeou-se forte tiroteio de que resultou a morte de 16 pessoas, compreendendo alguns civis e, na maioria, elementos das FAPLA.
Este facto agrava extraordinariamente as relações entre o MPI.A e a parte portuguesa. Entretanto, acontecem mais incidentes entre o MPLA e a FNLA em Novo Redondo, Gabela, N'Dalatando (Vila Salazar), Malange, Andulo, N'Giva (Pereira D'Eça), Saurimo (Henrique Carvalho), etc.
Por esta altura e como é óbvio, o Governo era praticamente inexistente e a Comissão Nacional de Defesa inoperante.
Nos princípios de Agosto, o Conselho Económico decide suspender as suas actividades. De facto, acompanhando a agudização do ambiente político e militar, o sistema bancário havia paralisado. No Huambo, por exemplo, havia agora cerca de 100 000 desempregados: em Luanda a indústria estava praticamente paralisada, a refinaria havia suspendido a sua laboração e os circuitos de distribuição dos diversos produtos estavam virtualmente parados – a fome fazia a sua aparição em Angola, sobretudo ao Norte onde se tinha verificado um grande afluxo de refugiados.
Neste contexto, Savimbi anuncia que se recusa a falar com Portugal, delegando no ministro N'Dele este encargo, proibindo ainda os ministros da UNITA de participarem em reuniões do Conselho de Ministros. As confrontações são, como se viu, generalizadas, está-se praticamente perante a secessão do território. A guerra dos comunicados surge novamente, tendo o MPILA, através de uma declaração, denunciado a ENLA: o alto-comissário interino responsabiliza os movimentos pelo que está a acontecer.
ACELERAÇÃO DA SITUAÇÃO MILITAR
Também, por esta altura, verificar-se-à a entrada de tropas da República da Africa do Sul na zona do complexo hidroelécttico de Calueque e Ruacaná, envenenando-se ainda mais as relações do MPLA com a parte portuguesa. Este movimento, em 21 de Agosto denunciará publicamente este estado de coisas.
Acontecem então as graves confrontações no Bairro do Saneamento em Luanda, sendo evacuados os ministros que restavam da FNLA. A UNITA retira completamente da cidade notando-se, então as primeiras evidências da aliança FNLA-UNITA, de há muito suspeitadas.
Em 11 de Agosto o MPLA é derrotado em Nova Lisboa, abandonado militarmente a cidade. Os incidentes começam a espalhar-se mais fortemente pelo Sul do território. Logo em 12 de Agosto, acontecem incidentes em Moçamedes, sendo o MPLA derrotado por forças conjuntas da FNLA/UNITA fortemente apoiadas por mercenários portugueses e sul-africanos. O alto-comissário interino, chamou então a si os poderes do Colégio Presidencial, o que lhe valeu ser atacado de todos os lados, principalmente pela FNLA que em 17 de Agosto, através de uma conferência de Imprensa dada em Kinshasa por Johnny Eduardo, protestava pelo facto de esta decisão ser contra o Acordo do Alvor, acusando o general Macedo de estar conluiado com o MPLA. Dizia ainda que não considerava que o Governo estivesse dissolvido e que o convocaria, como primeiro-ministro em exercício, para local a indicar. Além disso, afirmava que o ELNA entraria em Luanda.
Ainda em 17 de Agosto, Vieira de Almeida afirmava em Lisboa que não voltaria a Angola como ministro e a UNTA (união sindical afecta ao MPLA) manifestava-se em Luanda contra a decisão de se nomearem direcções para a Banca particular, mas que no fundo significava um apoio ao MPLA para que ocupasse os lugares deixados vagos no Governo pelos outros dois movimentos.
Dois dias antes, tinha havido confrontações no Lobito de que o MPLA tinha saído vitorioso, e as FAP encontravam-se completamente empenhadas em missões aero-navais que tinham como objectivo transportar elementos dos movimentos para as suas áreas «normais». As vias de circulação estavam cortadas, não sendo possível o abastecimento em Luanda.
Em 18 de Agosto, o gabinete militar do alto-comissário emite um comunicado sobre o «rapto» de Mateus Neto (FNLA), que em 23 do mesmo mês fará a sua autocrítica, através da Emissora Oficial.
Então, em 22 de Agosto de 1975, é publicado o Decreto-lei nº 458 - A/75, que suspende transitoriamente a vigência do Acordo do Alvor, no respeitante aos órgãos do Governo de Angola, tendo ao mesmo tempo sido atribuidas ao alto-comissário a função legislativa e a superintendência na função executiva. Determinava-se ao mesmo tempo, que fossem substituídos os ministros portugueses no Governo de transição de Angola (para se evitarem acusações de concluio com este ou com aquele movimento), bem como a substituição, por directores-gerais nomeados pelo alto-comissário, de todos os ministros que de facto se tivessem ausentado. E novamente as acusações contra Portugal, choveram de todos os lados, tambem nesta altura, Portugal comunicava a suspensão temporária do Acordo do Alvor e a adopção de certas medidas de emergência às Nações Unidas, à OUA, aos novos estados africanos de expressão portuguesa e a outros países africanos e europeus, justificando as medidas tomadas e apelando para os bons ofícios de alguns desses países. Era então ministro dos Negócios Estrangeiros o dr. Mário Ruivo, que juntamente com o Presidente da República, General Costa Gomes, e elementos destacados em Portugal da Comissão Coordenadora do MFA de Angola, constituíam o grupo que aqui tentava resolver os múltiplos problemas que se punham. Andava então na «berra» o documento dos «Nove»...
A 21 de Agosto, o MPLA denuncia a ponte aérea Kinshasa-Negaje e a presença já confirmada de tropas da RAS [República da África do Sul] em Calueque. Só no início de Outubro se verificará o desembarque dos primeiros cubanos em Angola que teve lugar em Porto Amboim.
Perto de Luanda encontrava-se por estas alturas a FNLA. que se tinha mantido no forte de S. Pedro à espera de reforços para a sua anunciada entrada em Luanda. O MPLA atinge em 19 de Agosto a barra do Dande que voltou a perder em 24. A 26 de Agosto há recontros na Jamba entre o MPLA e a UNITA. Um dos directores das minas é morto e o restante pessoal pretende abandonar o local. Já aqui, virá Portugal a assumir um encargo de seis milhões de contos se tudo continuar na mesma...
No dia 30 de Agosto a FNLA chega junto ao Quinfangondo, a cerca de 20 km de Luanda. Em Lisboa tomam posse o novo alto-comissário almirante Leonel Cardoso e o novo comandante-chefe-adjunto, generaI Heitor Almendra. A Reuter anuncia que em Lisboa o MPLA e a UNITA tinham firmado um acordo de cessar-fogo. Infelizmente tal não era verdade. Haviam sido acordados alguns princípios, mas a partir daqui, em vez de convergirem, estes movimentos afastar-se-iam cada vez mais. A UNITA acabaria por aliar-se à FNLA e a ser derrotada juntamente com esta no período pós-independência. Uma verdadeira aliança, se esta não fosse tão fortemente receada pela FNLA e outros interesses externos que também apoiavam a UNITA, teria certamente conduzido a situação bem menos dramática. A UNITA receava ser «comida» pelo MPLA, o MPLA pretendia utilizá-la para resolver o problema de vez com a FNLA. Mais tarde se analisaria de novo o problema. Era nisto que consistia uma aliança táctica, mas a UNITA era demasiado pequena e cautelosa para jogar tão forte.
Com o novo alto-comissário, secundado no terreno por homens como Almendra, a parle portuguesa adquire o dinamismo que lhe faltava e uma direcção em que não têm lugar os equívocos. A situação política e militar é mais clara (não mais fácil!) e portanto é possível um outro trabalho, em que avultava a ponte aérea que era necessário dinamizar constantemente. Em Lisboa, junto ao Presidente da República trabalhava
o Gabinete de Angola, «caixa de ressonância» da Comissão Coordenadora, já que continuava a haver «pouca ressonância» em relação aos problemas angolanos. Por aqui surgirá a necessidade de uma Secretaria de Retornados, que na altura será o IARN, só possível dadas as especiais características do tenente-coronel Amaral, que seria o seu director. Hoje é fácil criticá-lo (ao IARN), mas só quem o iniciou saberá as dificuldades que encontrou para montar, à escala nacional, um serviço para ocorrer a um problema que a consciência nacional não vivia.
A norte do Quifangondo, em 1 de Setembro, morre um alferes português e são aprisionadas três praças pela FNLA. As praças são libertadas mais tarde.
Por esta altura as FAP estavam presentes em Luanda, Cabinda, Santo António do Zaire, Catete, Nova Lisboa, Lobito, Moçamedes, Sá da Bandeira, Dondo e Benguela. O seu total não ultrapassava os 18 mil homens. De Luanda eram constantemente pedidas «tropas especiais» dado que a data de independência se aproximava e era necessário prevenir militarmente a retirada das nossas tropas e dos portugueses» que ainda lá se encontravam e desejavam embarcar. Portugal tinha que garantir, como qualquer outra força nas suas circunstâncias, os principais pontos estratégicos, tais como cais. aeroportos, etc. Mas o sempre prometido retorço não chegava, nem chegou à excepção de «paras» voluntários em 2 de Outubro. À medida que se aproximava o 11 de Novembro e depois o 25 de Novembro, os problemas aumentavam quanto a esta eventualidade. Mais uma vez parecia dar-se razão ao slogan, «nem mais um soldado para o ultramar».
O presidente da UNITA, Jonas Savimbi, profere, em 7 de Setembro, um discurso em que ataca fortemente a parte portuguesa. Ele próprio havia afirmado diversas vezes, que na perspectiva da UNITA seria importante que os portugueses se mantivessem em Angola, por alguns anos, através de um estatuto a discutir. A evolução do processo, sobretudo a aliança FNLA/UNITA e a saída progressiva de Portugal, provocaram neste movimento, o desencanto e a desconfiança em relação a Portugal, que agora se materializava.
No dia 11 de Setembro, o MPLA desencadeia uma ofensiva a norte de Luanda, tendo chegado aos Libongos. Assim se demonstrava ser possível aliviar a pressão que a FNLA pretendia manter em relação à capital. Este movimento dispunha, nesta altura, de apoios externos que continuavam a ser insuflados tendo em linha de conta a independência que se aproximava. A FNLA não justificava os desaires desses apoios dada a sua falta de inserção popular. Acabaria, assim, por morrer aos poucos e tanto mais depressa consoante os golpes que lhe eram sucessivamente vibrados pelo MPLA.
Em 16 de Setembro, chegam a Luanda os delegados da reunião de Lusaka, para conversações com o MPLA. Nesta reunião, tinham estado presentes a República Popular do Congo Zâmbia, Tanzânia, Botswana, e Moçambique. Seguiram-se, depois, outras reuniões neste mesmo local, possivelmente para se assentarem melhor os princípios fundamentais e as tarefas concretas, no sentido do novo não-alinhamento em África. De facto, é comum ouvir-se cm relação à RPA que esta é mais um «satélite» da URSS. No entanto, poucos conhecem o espírito do manifesto de Lusaka e as atitudes de países como a Tanzânia, perante a Federação que esta constituía com o Quénia (pró-EUA) e o Uganda (pró-URSS). Isto para não falar da República Popular do Congo ou da Zâmbia, condicionada por tantos e variados sectores. Do leque de países reunidos em Lusaka. resultou pois uma delegação que travou conversações com o MPLA, que (não o esqueçamos) estava na altura perante ameaças bem concretas.
Isto não impede, porém, que certamente se tenham delineado as grandes linhas estratégicas com vista ao não alinhamento desses países, única forma de poderem, de futuro, desfrutar de uma verdadeira independência. Algo de semelhante está aliás, a acontecer em relação à Rodésia; e algo de semelhante se, concretiza, por exemplo, numa Nigéria. E tudo se materializa, finalmente, no grande apoio diplomático que o MPLA foi sucessivamente obtendo no continente africano, a ponto de ter decisivamente influenciado a correlação de forças a nível da OUA.
Mas. entretanto, agigantava-se o espantalho da internacionalização do conflito, avulta-se a arena dos interesses que, derrotados no campo de luta, julgam poder resolver os reais problemas dos povos, recorrendo a grandes organizações, dispondo de grande poder militar. Assim, em 19 de Setembro, o grupo africano na ONU, rejeitava uma proposta de Leopold Senghor (Senegal), no sentido de remeter para a ONU o problema de Angola. Em 27 de Outubro, este mesmo grupo tomaria uma posição clara, reprovando a acção da coluna, que vinda da República da Africa do Sul, tentava desestabilizar a situação político-militar em Angola, nas proximidades da data da Independência, favorecendo assim as posições das já decrépitas FNLA/UNITA.
Mas, ainda em Setembro, no dia 21, a FNLA conseguia retomar o Caxito e a Barra do Dande, nas proximidades de Luanda.
Nos dias a seguir, a OUA reúne para apreciar, entre outras coisa, a situação em Angola. A OUA afirma, então a sua posição de que deveria constituir-se um Governo de Unidade Nacional, englobando os três Movimentos. Em seguida, envia a Angola uma numerosa delegação, que entrará em contado com os três movimentos. Nesta altura, portanto, o MPLA não dispunha ainda, na OUA, do apoio que depois foi sucessivamente conseguindo.
Também a Conferência dos Países Não-Alinhados, realizada em Lima, no Peru, se havia manifestado favoravelmente em relação ao Movimento de Agostinho Neto e era flagrante o apoio que estes lhe dispensavam na ONU.
Em, 10 de Outubro chegaram a Luanda as delegaçôes da OUA, acontecendo então uma impressionante movimentação popular durante a sua visita. O MPLA não perdia o ensejo de mostrar a sua real implantação. Entre 15 e 17 de Outubro a delegação vai a Nova Lisboa a fim de contactar a UNITA e entre 17 e 19 vai ao Ambriz para contactar a FNLA.
Entretanto entre 16 e 17 a FNLA desencadeia acções na 1ª Região Político-Militar do MPLA, situada a Norte de Luanda, a que possivelmente não é alheia a presença dos observadores da OUA.
A 19 de Outubro o Directório do MPLA faz uma declaração, lida pelo Presidente Agostinho Neto, na qual acusa a FNLA de ser a culpada dos acontecimentos. A 22 do mesmo mês, um grupo de portugueses (que depois virão a Portugal), reúne-se e aprova uma moção em que se exige que a Independência seja dada ao MPLA.
Ainda em Outubro, Vítor Crespo desloca-se a Angola, tendo do estado no dia 23 em Luanda, dia 24 no Ambriz e no dia 25 em Nova Lisboa.
A data da Independência aproximava-se a passos largos. Em Angola a posição era cada vez mais favorável ao MPLA, apesar dos obstáculos que faltava vencer. Consequentemente a pressão internacional aumentava (lá e cá).
Então, em 26 de Outubro, processa-se a entrada em Angola de uma coluna militar que, vinda da Africa do Sul, anunciava entrar em Luanda até 8 de Novembro. Os objectivos eram, pois, claros e inserem-se numa manobra desesperada mais vasta que visava tentar o impossível. Em Portugal, alguns políticos afirmavam que o MPLA estava por dias. Aqui, a correlação de forças, não permitia que Portugal assumisse uma posição clara.
A entrada desta coluna, conjuntamente com a movimentação de forças da FNLA/UNITA, vai dar origem a uma série de combates, extremamente violentos, em três linhas fundamentais, que tentavam superar o MPLA: de Sul para Norte e junto à costa, apresentava-se a coluna militar que referimos; sensivelmente de Leste para Oeste, desenvolviam as forças da FNLA/UNITA; de Norte para Sul avançavam as forças da FNLA/Zaire.
O ponto de confluência fundamental era Luanda. Os objectivos principais, o domínio da faixa costeira, a Norte e Sul e a partilha do MPLA entre a área de Luanda e o Leste.
Entre os dias 1 e 5 de Novembro, a ONU reúne em Kampala, estando presentes observadores portugueses, expressamente convidados para o efeito. Portugal afirma que reconhecerá os Movimentos de Libertação até à data da Independência e que a soberania será entregue ao Povo angolano. Ficava, pois, em aberto, o reconhecimento de um Governo em Angola.
Retornados não são seres de outra espécie
No dia 2 de Novembro, termina a ponte aérea, enquanto se carregam os últimos navios incluídos na ponte marítima. A ponte aérea, a maior da história da humanidade, tinha constituído das principais preocupações das autoridades portuguesas. Havia que garantir, a quem desejasse embarcar, a possibilidade de o fazer, embora sem encorajar as pessoas para que o fizessem. Os problemas que se levantaram e que foi preciso resolver revelaram-se imensos. Assim, houve que ter em conta os elevados custos da operação e foi necessário arranjar os meios (gratuitos e fretados) planeando depois a sua utilização racional articulada com os problemas do combustível que se tentava arranjar nos mais diversoso locais. Foram enviados petroleiros para obviar as falhas do fornecimento das refinarias de Luanda e a máquina dos Negócios Estrangeiros tentava conseguir a chamada “gasolina política”, que por vezes faltava. Havia que garantir a segurança, desde os terminais aéreos e marítimos, até à alimentação e saúde dos numerosos refugiados que se aglomeravam, impacientes. Nos portos e aeroportos, a bagagem amontoava-se. E as pessoas partiam, por vezes sem os seus haveres, acumulando-se depois no aeroporto de Lisboa. Havia ainda o problema das tranferências de dinheiro, da quantidade de bagagens que cada um podia trazer, etc, etc, etc... As reacções dos indivíduos eram as mais diversas. Desde os que colaboravam com as autoridades organizando os embarques nos terminais, viajando vezes sem conta, entre Angola e Portugal, ou acolhiam aqui os refugiados que iam chegando. Outros, traumatizados pelos acontecimentos, lançavam em frente o seu egoismo e tentavam passar o que podiam, mesmo que isso significasse que outros nada poderiam trazer. O controlo de tudo isto era dificílimo e os negócios ilícitos proliferavam.
Com a vinda dos refugiados, o povo português assumia uma maior consciência da magnitude do problema. Mas esse problema não assumia a dimensão nacional que efectivamente tem, nem a incapacidade de o enfrentar. Muitos acabavam por repelir simplisticamente os que acabavam de chegar, apelidando-os de colonialistas, reaccionários e um perigo para a Revolução. Mas o problema não era só este. De facto qualquer massa de desadaptados é um perigo social, sobretudo se estes são traumatizados, como é o caso. Era preciso pois acolhê-los condignamente, integrá-los na sociedade, inclui-los nos circuitos de emigração, que permitissem o seu refluxo para a terra de onde tinham partido.
No período que vai de Agosto a 31 de Outubro, os números registados no que respeita a transporte de pessoal e material foram: TAP comercial, 68.761; TAP, aviões fretados 46.134. Em voos gratuitos temos a TAP com 1.382, EUA 30.727, URSS 4.771, França 3.874, GB 5.906, RFA [República Federal Alemã], 4.195, RDA [República Democrática Alemã] 4.039. Por via marítima foram transportados em navios fretados 5.104 pessoas e em navios oferecido pela URSS 690. Isto perfaz um total de 238.265. No que respeita a bagagens, foram transportadas na ponte aérea 1.140 toneladas e por via marítima (comercial) cerca de 226.000 metros cúbicos, além de 15.490 viaturas.
Evidentemente, que além destes números, haverá que contar com os refugiados que abandonaram Angola, quer pelas fronteiras Sul e Norte ou para a Zâmbia (poucos) e que depois utilizaram meios não controlados. Há que contar também com os que saíram de Angola antes desta data. No entanto, é inegável que o maior número de refugiados utilizaram estes meios no período considerado, pelo que o número total não excederá possivelmente as 320/350.000 pessoas.
Em 11 de Novembro aconteceu a Independência de Angola. Depois do arriar da bandeira na fortaleza, ao pôr-do-sol, o último alto-comissário, almirante Leonel Cardoso, embarcava no «Niassa» que, juntamente com os outros navios aguardara dentro dos limites das águas territoriais o primeiro minuto do dia 11, zarpando em seguida para Portugal. Em Luanda, seguir-se-iam diversos festejos e comemorações, sob a égide do MPLA e na presença de diversas entidades estrangeiras convidadas por este Movimento, Da presença portuguesa, restava agora, numa qualidade semioficial, o dr. Teixeira da Mota, além de todos os portugueses que haviam efectivamente permanecido na terra que consideraram sua. A UNITA e a FNLA, haviam proclamado a República Democrática de Angola, sem que no entanto, esta viesse a ser reconhecida por qualquer país. A situação militar era ainda tensa. Avizinhavam-se grandes combates, entre o MPLA, que havia formalizado um pedido de auxílio a Cuba e à URSS e os seus opositores, que dispunham dos apoios que se conhecem.
Em Portugal, a independência de Angola era um problema grave sob o ponto de vista político. Não só devido aos diversos prismas com que o problema era visto por diferentes forças políticas, mas também pelo peso da pressão externa. Não foi, pois, possível a tomada de uma resolução, que, pelo menos levasse em linha de conta, de uma maneira realista, os interesses materiais do Povo português. Portugal, teve nos últimos momentos do período da descolonização deste território, grandes hipóteses de entrar no caminho das boas relações com a RPA [República Popular de Angola], em melhores condições do que as actuais. Para resolver o problema da posição portuguesa, punham-se diferentes hipóteses, desde o reconhecimento de jure do MPLA, ao reconhecimento de facto deste Movimento, que poderia ser acompanhado ou não do reconhecimento »com efeitos limitados» dos outros Movimentos. Uma posição destas tinha profundas implicações em relação ao panorama político e militar, sobretudo no respeitante à política externa. Assim, uns, talvez desconhecendo a essência do problema, afirmavam que o MPLA estava por dias, outros, receavam possíveis reacções de retornados (sem ter em conta o que representava para a resolução dos seus problemas), mas a grande maioria receava fundamentalmente as reacções de países estrangeiros.
O ambiente político em Portugal já se encontrava bastante complicado. Assim, embora estando prevista uma deslocação de Vítor Crespo a Luanda onde assistiria a uma cerimónia com o país já independente (e nisto consistiria o reconhecimento de facto), esta foi cancelada à última hora, já que o Governo reunido em S. Bento não dava o seu aval a este procedimento. Estavam estabelecidos à volta deste assunto (e não só) os choques relativos, entre o Conselho da Revolução e as forças presentes no Governo, o que viria a contribuir possivelmente para a reformulação da direcção polítíco-militar em 25 de Novembro.
Depois, como todos sabemos, o problema foi sendo sucessivamente adiado, as relações entre os dois países passaram por melhores e piores momentos (mas nunca bons e suficientes) enquanto outros países reconheciam primeiro que Portugal, uma situação que já era evidente há muito tempo. Resta-nos agora esperar, que se ultrapassem as dificuldades que restam, para entrarmos numa época de franca cooperação. E que os refugiados, vítimas directas de uma situação que os ultrapassou, também compreendam que esta será a única e a melhor via para a tentativa de solução dos seus problemas, opondo-se fundamentalmente às manobras dos que persistem querer mantê-los como seres de outra espécie, necessariamente desenquadrados do pais onde se acolheram.
Dezasseis anos depois, a data contínua bem viva
Pela primeira vez em declaração oficial, os Estados Unidos revelaram a presença de tropas cubanas em Angola em Novembro de 1975. Três meses depois, durante uma breve visita a Caracas, Henry Kissinger disse, em privado, ao presidente Carlos Andrés Perez: «Os nossos serviços de informação estão tão deteriorados, que só soubemos da ida dos cubanos para Angola quando já lá estavam».
Naquela altura, já estavam em Angola muitas tropas, especialistas militares e técnicos civis cubanos, em número que ultrapassa o que Henry Kissinger poderia prever. Havia tantos barcos cubanos ancorados na Baía de Luanda, que o Presidente Agostinho Neto, ao contá-los da sua janela, sentiu um estremecimento de pudor, próprio do seu carácter. «Não é justo teria ele dito a um funcionário amigo — por este caminho, Cuba vai arruinar-se».
E provável que nem os próprios cubanos tivessem previsto que a ajuda solidária ao povo angolano viesse a alcançar tamanhas proporções. O que sabiam, desde o início, era que a acção teria de ser decisiva e rápida, e que de modo nenhum se poderia perder.
Os contactos entre a revolução cubana e o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) estabeleceram-se pela primeira vez em Agosto de 1965, quando «Che» Guevara participava nas guerrilhas do Congo e desde então intensificaram-se bastante. No ano seguinte, esteve em Cuba o próprio Agostinho Neto, acompanhado por Endo, o comandante-chefe do MPLA, que viria a morrer durante a guerra, tendo-se avistado ambos com Fidel Castro.
Em breve, e pelas próprias condições da luta em Angola, esses contactos tornaram-se apenas eventuais. Só em Maio de 1975, data em que os portugueses se preparavam para retirar das colónias de Africa, o comandante cubano Flavio Bravo se encontrou em Brazaville com Agostinho Neto, altura em que este lhe solicitou auxílio no transporte de um carregamento de armas, tendo-o consultado, por outro lado, sobre a possibilidade de uma assistência mais ampla e específica. Consequentemente, o comandante Raul Diaz Arguelles deslocou-se, três meses mais tarde, a Luanda, à frente de uma delegação civil cubana, e Agostinho Neto foi, então, mais preciso, ainda que não ambicioso: solicitou o envio de um grupo de instrutores para fundar e dirigir quatro centros de treino militar.
Bastaria um conhecimento superficial da situação de Angola para se compreender que o pedido de Neto era, também, típico da sua modéstia. Ainda que o M PLA, fundado em 1956, fosse o movimento de libertação mais antigo de Angola, e se bem que o único implantado numa base popular mais ampla e oferecendo um programa social, político e económico de acordo com as condições próprias do país, era, contudo, o que se encontrava numa situação militar menos vantajosa. Dispunha de armamento soviético, mas carecia de pessoal especializado para o manusear. Pelo contrário, as tropas regulares do Zaire, bem treinadas e abastecidas, haviam penetrado em Angola desde o dia 25 de Março, proclamando em Carmona um governo de facto presidido por Holden Roberto, dirigente da FNLA e cunhado de Mobutu, cujas ligações com a CIA eram do conhecimento público. A Leste, sob os auspícios da Zâmbia, encontrava-se a UNlTA comandada por Jonas Savimbi, um aventureiro sem princípios, que tinha mantido uma colaboração constante com os militares portugueses e com as companhias estrangeiras de exploração. Por último, as tropas regulares da África do Sul, através do território ocupado da Namíbia, tinham cruzado a fronteira meridional de Angola no dia 5 de Agosto, a pretexto de protegerem as barragens do complexo hidroeléctrico de Ruacana-Caluaque.
Todas estas forças, com os seus enormes recursos económicos e militares, estavam prontos para cerrar à volta de Luanda um círculo irresistível, em vésperas do 11 de Novembro, data em que o Exército português abandonava aquele vasto, rico e formoso território, onde tinham vivido felizes durante quinhentos anos. De modo que, quando os dirigentes cubanos receberam o pedido de Neto, não se limitaram a cumpri-lo à risca, tendo decidido mandar de imediato um contigente de 480 especialistas, que num prazo de seis meses deviam instalar quatro centros de treino e organizar 16 batalhões de infantaria, bem como 25 baterias de morteiro e metralhadoras antiaéreas. Como complemento, enviaram uma brigada de médicos, 115 veículos e uma equipa bem preparada de comunicações.
Este primeiro contingente foi transportado em barcos improvisados. O «Vietname Heróico», o único próprio para passageiros, fora comprado pelo ditador Fulgêncio Batista a uma companhia holandesa, em 1956, e depois convertido em navio-escola. Os outros dois, o «Coral lsland» e «La Plata» eram navios mercantes adaptados de urgência para o efeito. Todavia, a forma como foram carregados ilustra bem o sentido de previsão e de audácia com que os cubanos haviam de enfrentar compromisso de Angola.
Parece insólito que tivessem levado de Cuba o combustível para os veículos. Na realidade, Angola é um país produtor de petróleo e, em contrapartida, os cubanos tiveram de transportar o carburante através de meio mundo, desde a União Soviética. Contudo, os cubanos preferiram actuar pelo seguro, e desde essa primeira viagem carregaram mil toneladas de gasolina repartidas por três barcos. O «Vietname Heróico» levou 200 em tanques de 55 galões cada um, e viajou com as escotilhas abertas, de modo a facilitar a eliminação de gases. O «La Plata» transportou a gasolina na coberta. A noite em que a estiva ficou concluída foi assinalada com uma festa popular cubana, rebentaram foguetes e assistiu-se a prodígios de pirotecnia mesmo nos molhes de Havana, onde uma faúlha perdida podia ter transformado em pó aqueles três arsenais flutuantes. O próprio Fidel Castro foi à despedida como fez posteriormente com todos os que partiam para Angola e, depois de ver as condições em que iriam viajar, soltou uma frase muito sua, mas apesar de tudo em tom casual:
«De qualquer maneira – disse – vão mais comodamente do que na Gramna».
Não havia qualquer garantia de que os militares portugueses iriam permitir o desembarque dos instrutores cubanos. No dia 26 de Julho desse ano, já depois de Cuba ter recebido o primeiro pedido do MPLA, Fidel Castro pediu a Otelo Saraiva de Carvalho, em Havana, que sugerisse ao Governo de Portugal que fosse dada a autorização para a entrada de reforços cubanos em Angola, o que Saraiva de Carvalho prometeu conseguir, sem que a sua resposta tenha alguma vez chegado. De modo que o «Vietname Heróico» fundeou em Porto Amboim a 4 de Outubro, às 6 e 30 da manhã; o «Coral Island» chegou no dia 7 e o «La Plata» a 11, em Ponta Negra. Chegaram sem licença de ninguém — mas também sem oposições.
Tal como estava previsto, os instrutores cubanos foram recebidos pelo MPLA e puseram a funcionar imediatamente os quatro centros de treino para instrutores. Um em Delatando, a que os portugueses chamavam Salazar, 300 quilómetros a Este de Luanda; outro no porto atlântico de Benguela; outro em Saurimo, antiga Henrique de Carvalho, na remota e desértica província oriental de Luanda, onde os portugueses tinham mantido uma base militar, que destruíram antes de retirarem; e a quarta em Cabinda. Nessa altura, as tropas de Holden Roberto estavam tão perto, que um monitor de artilharia cubana, quando dava a primeira instruçâo aos seus recrutas de Delatando, via, do sítio onde se encontrava, os blhdados dos mercenários a avançar.
No dia 23 de Outubro, as tropas regulares da Africa do Sul penetraram através da Namíbia, com uma brigada mecanizada e, três dias depois, ocupavam sem resistência as cidades de Sá da Bandeira e de Moçâmedes.
Era um passeio dominical. Os sul-africanos levavam consigo equipamentos de «cassettes» com música de festa instalados nos tanques. No Norte, o chefe da coluna mercenária dirigia as operações num Honda desportivo, acompanhado por uma ruiva estilo actriz de cinema. Avançava com ar de quem está de férias, sem colunas de exploradores; e nem se deve ter dado conta do local de onde veio o roquete que fez voar o seu carro em pedaços. Na mala da mulher, apenas foi encontrado um vestido de gala, um biquini e o convite para a festa de vitória que Holden Roberto tinha já preparado em Luanda.
No fim dessa semana, os sul-africanos tinham penetrado já mais de 600 quilómetros em território angolano e avançavam para Luanda, à razão de uns 70 quilómetros diários. No dia 3 de Novembro haviam atacado o escasso pessoal do centro de instrução para recrutas de Benguela. Assim, os instrutores cubanos tiveram de abandonar as escolas para enfrentar os invasores, acompanhados dos seus aprendizes de soldados, aos quais davam instruções durante as pausas do combate. Até os médicos reviveram a sua prática de milicianos e foram para as trincheiras. Os dirigentes do MPLA, preparados para a luta de guerrilhas, mas não para uma guerra total, compreenderam então que aquele conluio de vizinhos, sustentado pelos recursos mais repugantes e devastadores do imperialismo, não poderia ser derrotado sem um apelo urgente à solidariedade internacional.
O espirito internacional dos cubanos é uma virtude histórica. Apesar de a revolução o ter definido e adaptado, dos princípios do marxismo, a sua essência encontrava-se muito bem estabelecida na conduta e na obra de José Marti. Esta vocação foi evidente — e geradora de conflitos — na América Latina, na Africa e na Ásia. Na Argélia, mesmo antes de a revolução cubana ter proclamado o seu carácter socialista, já Cuba tinha prestado uma ajuda considerável aos combatentes da FLN na sua guerra contra o colonialismo francês. Tanto assim que o Governo do general De Gaulle proibiu como represália, os voos da companhia cubana de aviação de atravessarem o céu da França. Mais tarde, enquanto Cuba era devastada pelo ciclone Flora, um batalhão de combatentes internacionalistas cubanos foi defender a Argélia contra Marrocos. Pode dizer-se que não existe nenhum movimento de libertação africano que não tenha contado com a solidariedade de Cuba, quer com material e armamento, quer com a formação de técnicos e especialistas militares e civis. Moçambique desde 1963; Guiné-Bissau, desde 1965, os Camarões e a Serra Leoa — todos solicitaram em algum momento e obtiveram de alguma forma a ajuda solidária dos cubanos. O presidente da República da Guiné, Sekou Touré, evitou um desembarque de mercenários com a ajuda de uma unidade de cubanos. O comandante Pedro Rodrigues Peralta, agora membro do Comité Central do Partido Comunista de Cuba, foi capturado e encarcerado vários anos pelos portugueses na Guiné-Bissau.
«Che» no Congo
Quando Agostinho Neto apelou para os estudantes angolanos em Portugal irem estudar para os países socialistas, muitos deles receberam acolhimento em Cuba. Presentemente, todos estão vinculados à construção do socialismo em Angola, alguns deles em posições de destaque. E o caso de Mingas, economista e actual ministro das Finanças de Angola; Henrique dos Santos, engenheiro geólogo, comandante e membro do Comité Central do MPLA e casado com uma cubana; Mantos, engenheiro agrónomo e actual chefe da Academia Militar e N'Dalo, que nos seus tempos de estudante se destacou como o melhor futebolista de Cuba e que, actualmente, é o segundo chefe da primeira brigada de Angola. Todavia, nada disto dá tanto significado à antiguidade e à intensidade da presença de Cuba em África como o facto de o próprio «Che» Guevara, no apogeu da sua carreira e da sua idade, ir combater nas guerrilhas do Congo, em 25 de Abril de 1965. No final da sua carta de despedida a Fidel Castro, renunciava ao seu posto de comandante e a tudo o que o vinculava legalmente a Cuba. Foi sozinho, num avião comercial, com nome e passaporte falsos, a fisionomia alterada por dois «toques» de mestre e uma pasta de negócios com livros literários e muitos inaladores para a sua asma insaciável, distraindo-se nas horas mortas, nos quartos dos hotéis, com intermináveis e solitárias partidas de xadrez. Três meses mais tarde, juntar-se-lhe-iam, no Congo, 200 cubanos, tropas que viajaram desde Havana, num barco carregado de armamento. A missão específica de «Che» era treinar guerrilheiros para o Conselho Nacional da Revolução do Congo, que combateriam contra Moisés Tchombé, aliado dos antigos colonos belgas e das companhias mineiras internacionais. Lumumba tinha sido assassinado. O chefe titular do Conselho Nacional da Revolução era Gaston Soumaliot, mas Laurent Cavila, dirigia as operações a partir do seu esconderijo de Kigona, na margem oposta do lago Tanganika. Aquela situação contribuiu, sem dúvida, para preservar a verdadeira identidade de «Che» Guevara e ele próprio para maior segurança, não figurou como chefe principal da missão. Por isso, era conhecido sob o pseudómino de Tatu, que era equivalente a «número dois» em swahili.
«Che» Guevara permaneceu no Congo de Abril a Dezembro de 1965. Não só treinava guerrilheiros como também os dirigia em combate, e lutava ele próprio. As suas ligações pessoais com Fidel Castro, assunto em relação ao qual muito se tem especulado, nunca enfraqueceram. Os seus contactos foram permanentes è cordiais, mediante sistemas de comunicação bastante eficazes.
Quando Moisés Tchombé foi destituido, os congoleses pediram a retirada dos cubanos como medida para facilitar o armistício. «Che» Guevara partiu como tinha chegado: sem fazer barulho. Foi pelo aeroporto de Dar-es-Salam, capital da Tanzânia, num avião comercial, e lendo e relendo, durante a viagem, um livro com problemas de xadrez, para tapar a cara durante as seis horas de voo, enquanto, a seu lado, o seu ajudante cubano tratava de entreter o comissário político do Exército de Zanzibar, um velho admirador de «Che» Guevara e que falava nele sem descanso durante a viagem, tentanto obter notícias a seu respeito e reiterando os seus desejos de o voltar a ver.
Aquele circuito fugaz e anónimo de «Che» Guevara em África deixou um rasto que ninguém poderia apagar. Alguns dos seus homens dirigiram-se para Brazaville, aí ensinando unidades de guerrilheiros para o PAIGC, dirigido por Amílcar Cabral, e em especial, para o MPLA.
Uma das forças treinadas por eles entrou clandestinamente em Angola, através de Kinshasa, e incorporou-se na luta contra os portugueses sob o nome de «Coluna Camilo Cienfuegos». Outra, infiltrou-se em Cabinda e, mais tarde, cruzou o rio Congo e implantou-se na zona dos Dembos, onde nasceu Agostinho Neto e a luta contra os portugueses se desenrolou ao longo de cinco séculos. Portanto, a acção solidária de Cuba em Angola não foi um acto impulsivo e casual, mas uma consequência da política contínua da revolução cubana em Africa. Só que havia um elemento novo e dramático nesta delicada decisão. Desta vez, não se tratava, simplesmente, de mandar uma possível ajuda, mas de empreender uma guerra regular e em longa escala, a 10.000 quilómetros do seu território, com um custo económico e humano incalculável e consequências políticas imprevisíveis.
A possibilidade de os Estados Unidos virem a intervir abertamente, e não através de mercenários, e da Africa do Sul, como o tinham feito até então, era, sem dúvida, um dos enigmas mais inquietantes. Todavia, uma análise rápida permitia prever que, pelo menos, teria de pensar três vezes, antes de o fazer, no momento em que acabava de sair do pântano do Vietname e do escândalo do Watergate, com um presidente que ninguém tinha eleito, com a CIA hostilizada pelo Congresso e desprestigiada ante a opinião pública, e a necessidade de se acautelar para que não aparecesse como aliada da Africa do Sul, racista, não só aos olhos da maioria dos países africanos, como, também, perante a população negra dos Estados Unidos, mais a mais em plena campanha eleitoral e no flamejante ano do bicentenário. Por outro lado, os cubanos podiam contar com a solidariedade e a ajuda material da União Soviética e dos outros países socialistas, mas também tinham conciencia das implicações que a sua acção poderia vir a ter na política de coexistência pacífica e do desanuviamento internacional. A decisão implicava consequências irreversíveis, e era um problema demasiado vasto e complexo para que pudesse ser resolvido em vinte e quatro horas. Em todo o caso, a Direcção do Partido Comunista de Cuba teve apenas vinte e quatro horas para se decidir, e fê-lo sem vacilar, no dia 5 de Novembro, durante uma reunião longa mas serena. Ao contrário do que se disse, tratou-se de um acto independente e soberano por parte de Cuba, e só depois da decisão, e não antes, se enviou a respectiva notificação à União Soviética. Noutro 5 de Novembro, dessa vez em 1843, uma escrava de Triunvirato, na região de Matanzas, a quem chamavam a Negra Carlota, tinha empunhado um machado e, à frente de um grupo de escravos, fizera uma rebelião. Como homenagem à sua figura, a acção solidária de Cuba em Angola foi dado o seu nome: «Operação Carlota.»
A «Operação Carlota» teve início com o envio de um batalhão reforçado de tropas especiais, composto de 650 homens. Foram transportados de avião, em voos sucessivos que duraram treze dias, desde a secção militar do aeroporto José Marti, em Havana, até ao aeroporto de Luanda, ainda ocupado por tropas portuguesas.
A sua missão específica era a de conter a ofensiva, de modo a que a capital de Angola não caísse em poder das forças inimigas antes da saída dos portugueses, e, logo de seguida, suster a resistência até à chegada de reforços por mar. Mas os homens que saíram nos dois voos iniciais já partiam convencidos de que chegariam demasiado tarde, e apenas abrigavam a esperança final de salvar Cabinda.
Um segredo guardado por oito milhões
O primeiro contigente saiu no dia 7 de Novembro, às quatro horas da tarde, num voo especial da Cubana de Aviacion, a bordo de um dos lendários «Bristol Britânia» BB 218 de turbo hélice, que tinham deixado de ser construídos pelos seus fabricantes ingleses e eram, assim, alvo de interesse no mundo inteiro. Os passageiros, que se recordam bem de serem 82, visto ter sido um número igual ao dos homens de Granma, tinham um ar saudável de turistas bronzeados pelo sol de Caribe. Todos iam vestidos de verão, sem insígnias militares, munidos de malas diplomáticas e passaportes normais, com os seus verdadeiros nomes e identidades. Os membros do batalhão de tropas especiais, que não dependem das Forças Armadas Revolucionárias, mas sim do Ministro do Interior, são guerreiros milito experientes, de elevado nível político e ideológico, alguns com cursos, leitores habituais e revelando uma permanente preocupação pela superação intelectual. De modo que aquele seu aspecto de civis ao domingo não deverá ter constituido novidade para eles.
Mas, nas malas diplomáticas, levavam metralhadoras, e no compartimento de carga do avião, em lugar da equipagem, havia um bom carregamento de artilharia ligeira, armas individuais de guerra, três canhões de 75 mm e três morteiros 82. A única transformação feita no avião, assistido por duas hospedeiras, era uma comporta, para poderem ser retiradas as armas da cabine de passageiros, em caso de emergência.
O voo de Havana a Luanda fez escala em Barbados, para meter combustível, no meio de uma tempestade tropical, e na Guiné-Bissau, durante cinco horas para esperar a noite, de modo a voarem secretamente até Brazaville. Os cubanos aproveitaram aquelas cinco horas para dormir, o que constituiu, para eles, o mais espantoso sono de toda a viagem, pois havia tantos mosquitos no aeroporto que as roupas das camas ficaram ensanguentadas.
Mobutu, com a sua arrogância proverbial, disse que Brazaville é iluminada pelo esplendor de Kinshasa, a moderna e fulgurante capital do Zaire. Nisso não lhe falta razão. As duas cidades estão situadas uma frente à outra, com o rio Congo no meio, e os respectivos aeroportos estão tão perto um do outro que os primeiros pilotos cubanos tiveram de os estudar muito bem para nâo aterrarem na pista inimiga. Fizeram-no sem contratempos, de luzes apagadas, para nâo serem vistos da outra margem, e permaneceram em Brazaville apenas o tempo suficiente para se informarem, por rádio, sobre a situação em Angola. O comandante angolano Xieto, que mantinha boas relações com o comissariado português, tinha obtido deste a autorização para os cubanos aterrarem em Luanda. Assim o fizeram, às dez da noite do dia 8 de Novembro, sem o auxílio da torre e debaixo de um aguaceiro torrencial. Quinze minutos mais tarde chegou o segundo avião. Naquele momento, apenas saíam de Cuba três barcos carregados com um regimento de artilharia, um batalhão de tropas motorizadas e o pessoal de artilharia a reacção, que começaria a desembarcar em Angola a partir de 27 de Novembro. Em contrapartida, as tropas de Holden Roberto estavam tão próximas, que horas antes tinham morto uma velha nativa com os tiros de canhões ao tentarem alcançar o quartel do Grande Farni, onde se concentraram os cubanos. Assim, estes nem tiveram tempo para descansar. Puseram-se em uniforme verde azeitona, incorporaram-se nas fileiras do MPLA e partiram para o combate.
A imprensa cubana, por questões de segurança, não publicara a notícia da intervenção em Angola. Mas, como acontece sempre em Cuba em assuntos militares tão delicados como este, a operação constituía um segredo ciosamente guardado por oito milhões de pessoas. O Primeiro Congresso do Partido Comunista, que se realizaria dali a poucas semanas, e que constituiu uma espécie de obsessão nacional durante todo aquele ano, adquiriu então uma dimensão nova.
O processo empregue para a formação das unidades de voluntários partiu de uma convocatória privada com os elementos da primeira reserva, que compreende todos os filhos varões entre os 17 e os 25 anos, bem como aqueles que já pertenceram às Forças Armadas Revolucionárias. Convocaram-nos por telegrama, para se apresentarem ao comité militar, sem mencionarem o motivo, mas este era tão evidente que todos aqueles que se achavam com capacidade militar para isso se dirigiram mesmo sem telegramas prévios, ao seu comité militar, pelo que muito trabalho se teve para que aquela solicitude maciça não se convertesse em desordem nacional. Até onde o permitiu a urgência da situação, o critério selectivo foi bastante minucioso. Não só se tomaram em conta a qualificação militar e as condições ffísicas e morais, mas também os antecedentes de trabalho e a formação política. Apesar deste rigor, são incontáveis os casos de voluntários que lograram enganar os filtros da selecção. Sabe-se de um engenheiro qualificado que se fez passar por condutor de camiões, de um alto funcionário que se fez passar por mecânico, de uma mulher que esteve prestes a ser admitida como soldado raso. Sabe-se do caso de um rapaz que foi sem licença do pai e que, mais tarde, se encontrou com ele em Angola, porque o pai também tinha ido às escondidas da família. Em contrapartida, um sargento de vinte anos não conseguiu que o mandassem de maneira nenhuma e, contudo, leria de vir a suportar o seu machismo ferido, por terem mandado a mãe, que é jornalista, e a noiva que é médica. Alguns deliquentes comuns, encarcerados, pediram para ser admitidos, mas nenhum desses casos foi contemplado.
A primeira mulher a partir, em princípios de Dezembro, tinha sido preterida muitas vezes, com o argumento de que «aquilo era muito pesado para uma mulher». Estava a preparar-se para ir clandestinamente de barco, e até já tinha escondido a sua roupa a bordo, com a cumplicidade de um companheiro que era fotógrafo, quando veio a saber que tinha sido escolhida para ir legalmente e por avião. O seu nome é Esther Lilia Diaz Rodriguez, uma ex-professora de vinte e três anos que ingressou nas Forças Armadas em 1969, tendo uma boa nota em tiro de infantaria. Com ela partiram, também, três irmãos, cada um de sua vez: César, Ruben e Erineldo. Todos por sua conta e, sem terem combinado, os quatro contaram a mesma mentira à mãe: que iam para as manobras militares de Camaguey, por causa do Congresso do Partido. Regressaram sãos e salvos, e a mãe está orgulhosa por terem estado em Angola, mas não lhes perdoa a mentira sobre as manobras em Camaguey.
As conversas com os que regressaram permitem concluir que alguns cubanos queriam ir para Angola por motivos pessoais muito diferentes. Pelo menos Um, infiltrou-se com o propósito simples de desertar, e logo sequestrou um avião português e pediu asilo em Lisboa. Nenhum deles foi à força, todos tiveram de formar filas de voluntários. Alguns negaram-se a partir depois de escolhidos e foram, depois, vítimas de toda a espécie de insultos públicos e desprezo em família. Mas não há dúvida que a imensa maioria foi para Angola com a plena convicção de cumprir um acto de solidariedade política, com a mesma consciência e amesma coragem com que quinze anos antes tinham rechaçado o desembarque em Playa Giron e, por isso mesmo, a Operação Carlota não foi uma simples expedição de guerreiros profissionais mas antes uma guerra popular.
Mas a questão era fundamentalmente entre os movimentos. Assim, ainda se consegue uma reunião entre a FNLA e o MPLA, em que este último, em posição de relativa força, impõe as condições para a desmilitarização de Luanda. Só que, dada a implantação popular do MPLA, isto significava o seu total poder na cidade. Como anular o poder popular? Como desarmá-lo? Como aceitaria a FNLA reconhecer esta real implantação? Evidentemente que não a reconhece e vai tentar manter a sua presença ao máximo.
Entretanto, no restante território, concretizava-se cada vez mais a linha de contenção militar da FNLA-Zaire, ao Norte. Atrás desta linha situava-se Luanda, a capital política do país. Sentia-se portanto que, caso surgissem novos problemas, o MPLA tentaria resolver definitivamente a questão, em vez de se continuar com paleativos.
Em 14 de Julho, no entanto, o ministro Melo Antunes, perante o agudizar da situação, desloca-se novamente a Luanda, tendo conseguido reunir-se com os três movimentos separadamente, no sentido de se tentar acalmar a situação e procurar uma solução. Em 16 de Julho a situação é efectivamente mais calma e em 17 de Julho a Comissão Nacional de Defesa, que tinha funcionado razoavelmente ao longo da sua existência, reuniu completa, pela última vez. Finalmente a FNLA sofre uma estrondosa derrota, acabando por resumir a sua presença militar ao Forte de S. Pedro, próximo da refinaria de Luanda e dos seus tanques de combustível. Também no Bairro do Saneamento, se mantinha a presença da FNLA – nas residências dos seus ministros, que estavam superlotadas de pessoal armado – 200 pessoas numa moradia segundo se apurou mais tarde.
Nesta circunstância e por parte da FNLA, só praticamente o ministro do Interior, Kabangu, se mostra à altura da situação, demonstrando a coragem e a arrogância de sempre. Os outros, já se haviam refugiado no Zaire e em «zonas seguras» e um raptou-se a si próprio quando viu que ia servir de «bode expiatório». Nestas circunstâncias a FNLA pretende por todos os meios recuperar posições perdidas, tentando reunir-se com os outros movimentos e com Portugal. Põe-se então às forças portuguesas o problema de evacuar ou não Carmona, S. Salvador e Negage, no Norte do País. Evacuar seria contribuir para um maior êxodo da população e acentuar ainda mais a «balcanização» do território. Não abandonar seria deixar nessas zonas, por um período necessariamente curto, um número elevado de «reféns» que poderiam ser utilizados como forma de pressão em relação ao que estava a acontecer em Luanda.
Sede da FNLA na Av. do Brasil, Luanda 1975
INCIDENTE DE VILA ALICE
Ainda a 25 de Julho acontece o célebre incidente da Vila Alice. Depois de desarmados por elementos das FAPLA, militares portugueses utilizando jeeps das FAP, haviam sido feridos gravemente, tendo sido alvejados pelas costas. E dado ao M PLA um prazo para entrega dos responsáveis. O prazo não é cumprido tendo sido prorrogado por duas horas. Então, na Vila Alice, é montado um dispositivo militar aparatoso que cerca a delegação do MPLA, tendo sido pedida a entrega dos responsáveis. No decurso das conversações que decorriam entre o comandante da nossa força e o representante do MPLA, desencadeou-se forte tiroteio de que resultou a morte de 16 pessoas, compreendendo alguns civis e, na maioria, elementos das FAPLA.
Este facto agrava extraordinariamente as relações entre o MPI.A e a parte portuguesa. Entretanto, acontecem mais incidentes entre o MPLA e a FNLA em Novo Redondo, Gabela, N'Dalatando (Vila Salazar), Malange, Andulo, N'Giva (Pereira D'Eça), Saurimo (Henrique Carvalho), etc.
Por esta altura e como é óbvio, o Governo era praticamente inexistente e a Comissão Nacional de Defesa inoperante.
Nos princípios de Agosto, o Conselho Económico decide suspender as suas actividades. De facto, acompanhando a agudização do ambiente político e militar, o sistema bancário havia paralisado. No Huambo, por exemplo, havia agora cerca de 100 000 desempregados: em Luanda a indústria estava praticamente paralisada, a refinaria havia suspendido a sua laboração e os circuitos de distribuição dos diversos produtos estavam virtualmente parados – a fome fazia a sua aparição em Angola, sobretudo ao Norte onde se tinha verificado um grande afluxo de refugiados.
Neste contexto, Savimbi anuncia que se recusa a falar com Portugal, delegando no ministro N'Dele este encargo, proibindo ainda os ministros da UNITA de participarem em reuniões do Conselho de Ministros. As confrontações são, como se viu, generalizadas, está-se praticamente perante a secessão do território. A guerra dos comunicados surge novamente, tendo o MPILA, através de uma declaração, denunciado a ENLA: o alto-comissário interino responsabiliza os movimentos pelo que está a acontecer.
ACELERAÇÃO DA SITUAÇÃO MILITAR
Também, por esta altura, verificar-se-à a entrada de tropas da República da Africa do Sul na zona do complexo hidroelécttico de Calueque e Ruacaná, envenenando-se ainda mais as relações do MPLA com a parte portuguesa. Este movimento, em 21 de Agosto denunciará publicamente este estado de coisas.
Acontecem então as graves confrontações no Bairro do Saneamento em Luanda, sendo evacuados os ministros que restavam da FNLA. A UNITA retira completamente da cidade notando-se, então as primeiras evidências da aliança FNLA-UNITA, de há muito suspeitadas.
Em 11 de Agosto o MPLA é derrotado em Nova Lisboa, abandonado militarmente a cidade. Os incidentes começam a espalhar-se mais fortemente pelo Sul do território. Logo em 12 de Agosto, acontecem incidentes em Moçamedes, sendo o MPLA derrotado por forças conjuntas da FNLA/UNITA fortemente apoiadas por mercenários portugueses e sul-africanos. O alto-comissário interino, chamou então a si os poderes do Colégio Presidencial, o que lhe valeu ser atacado de todos os lados, principalmente pela FNLA que em 17 de Agosto, através de uma conferência de Imprensa dada em Kinshasa por Johnny Eduardo, protestava pelo facto de esta decisão ser contra o Acordo do Alvor, acusando o general Macedo de estar conluiado com o MPLA. Dizia ainda que não considerava que o Governo estivesse dissolvido e que o convocaria, como primeiro-ministro em exercício, para local a indicar. Além disso, afirmava que o ELNA entraria em Luanda.
Ainda em 17 de Agosto, Vieira de Almeida afirmava em Lisboa que não voltaria a Angola como ministro e a UNTA (união sindical afecta ao MPLA) manifestava-se em Luanda contra a decisão de se nomearem direcções para a Banca particular, mas que no fundo significava um apoio ao MPLA para que ocupasse os lugares deixados vagos no Governo pelos outros dois movimentos.
Dois dias antes, tinha havido confrontações no Lobito de que o MPLA tinha saído vitorioso, e as FAP encontravam-se completamente empenhadas em missões aero-navais que tinham como objectivo transportar elementos dos movimentos para as suas áreas «normais». As vias de circulação estavam cortadas, não sendo possível o abastecimento em Luanda.
Em 18 de Agosto, o gabinete militar do alto-comissário emite um comunicado sobre o «rapto» de Mateus Neto (FNLA), que em 23 do mesmo mês fará a sua autocrítica, através da Emissora Oficial.
Então, em 22 de Agosto de 1975, é publicado o Decreto-lei nº 458 - A/75, que suspende transitoriamente a vigência do Acordo do Alvor, no respeitante aos órgãos do Governo de Angola, tendo ao mesmo tempo sido atribuidas ao alto-comissário a função legislativa e a superintendência na função executiva. Determinava-se ao mesmo tempo, que fossem substituídos os ministros portugueses no Governo de transição de Angola (para se evitarem acusações de concluio com este ou com aquele movimento), bem como a substituição, por directores-gerais nomeados pelo alto-comissário, de todos os ministros que de facto se tivessem ausentado. E novamente as acusações contra Portugal, choveram de todos os lados, tambem nesta altura, Portugal comunicava a suspensão temporária do Acordo do Alvor e a adopção de certas medidas de emergência às Nações Unidas, à OUA, aos novos estados africanos de expressão portuguesa e a outros países africanos e europeus, justificando as medidas tomadas e apelando para os bons ofícios de alguns desses países. Era então ministro dos Negócios Estrangeiros o dr. Mário Ruivo, que juntamente com o Presidente da República, General Costa Gomes, e elementos destacados em Portugal da Comissão Coordenadora do MFA de Angola, constituíam o grupo que aqui tentava resolver os múltiplos problemas que se punham. Andava então na «berra» o documento dos «Nove»...
A 21 de Agosto, o MPLA denuncia a ponte aérea Kinshasa-Negaje e a presença já confirmada de tropas da RAS [República da África do Sul] em Calueque. Só no início de Outubro se verificará o desembarque dos primeiros cubanos em Angola que teve lugar em Porto Amboim.
Perto de Luanda encontrava-se por estas alturas a FNLA. que se tinha mantido no forte de S. Pedro à espera de reforços para a sua anunciada entrada em Luanda. O MPLA atinge em 19 de Agosto a barra do Dande que voltou a perder em 24. A 26 de Agosto há recontros na Jamba entre o MPLA e a UNITA. Um dos directores das minas é morto e o restante pessoal pretende abandonar o local. Já aqui, virá Portugal a assumir um encargo de seis milhões de contos se tudo continuar na mesma...
No dia 30 de Agosto a FNLA chega junto ao Quinfangondo, a cerca de 20 km de Luanda. Em Lisboa tomam posse o novo alto-comissário almirante Leonel Cardoso e o novo comandante-chefe-adjunto, generaI Heitor Almendra. A Reuter anuncia que em Lisboa o MPLA e a UNITA tinham firmado um acordo de cessar-fogo. Infelizmente tal não era verdade. Haviam sido acordados alguns princípios, mas a partir daqui, em vez de convergirem, estes movimentos afastar-se-iam cada vez mais. A UNITA acabaria por aliar-se à FNLA e a ser derrotada juntamente com esta no período pós-independência. Uma verdadeira aliança, se esta não fosse tão fortemente receada pela FNLA e outros interesses externos que também apoiavam a UNITA, teria certamente conduzido a situação bem menos dramática. A UNITA receava ser «comida» pelo MPLA, o MPLA pretendia utilizá-la para resolver o problema de vez com a FNLA. Mais tarde se analisaria de novo o problema. Era nisto que consistia uma aliança táctica, mas a UNITA era demasiado pequena e cautelosa para jogar tão forte.
Com o novo alto-comissário, secundado no terreno por homens como Almendra, a parle portuguesa adquire o dinamismo que lhe faltava e uma direcção em que não têm lugar os equívocos. A situação política e militar é mais clara (não mais fácil!) e portanto é possível um outro trabalho, em que avultava a ponte aérea que era necessário dinamizar constantemente. Em Lisboa, junto ao Presidente da República trabalhava
o Gabinete de Angola, «caixa de ressonância» da Comissão Coordenadora, já que continuava a haver «pouca ressonância» em relação aos problemas angolanos. Por aqui surgirá a necessidade de uma Secretaria de Retornados, que na altura será o IARN, só possível dadas as especiais características do tenente-coronel Amaral, que seria o seu director. Hoje é fácil criticá-lo (ao IARN), mas só quem o iniciou saberá as dificuldades que encontrou para montar, à escala nacional, um serviço para ocorrer a um problema que a consciência nacional não vivia.
A norte do Quifangondo, em 1 de Setembro, morre um alferes português e são aprisionadas três praças pela FNLA. As praças são libertadas mais tarde.
Por esta altura as FAP estavam presentes em Luanda, Cabinda, Santo António do Zaire, Catete, Nova Lisboa, Lobito, Moçamedes, Sá da Bandeira, Dondo e Benguela. O seu total não ultrapassava os 18 mil homens. De Luanda eram constantemente pedidas «tropas especiais» dado que a data de independência se aproximava e era necessário prevenir militarmente a retirada das nossas tropas e dos portugueses» que ainda lá se encontravam e desejavam embarcar. Portugal tinha que garantir, como qualquer outra força nas suas circunstâncias, os principais pontos estratégicos, tais como cais. aeroportos, etc. Mas o sempre prometido retorço não chegava, nem chegou à excepção de «paras» voluntários em 2 de Outubro. À medida que se aproximava o 11 de Novembro e depois o 25 de Novembro, os problemas aumentavam quanto a esta eventualidade. Mais uma vez parecia dar-se razão ao slogan, «nem mais um soldado para o ultramar».
O presidente da UNITA, Jonas Savimbi, profere, em 7 de Setembro, um discurso em que ataca fortemente a parte portuguesa. Ele próprio havia afirmado diversas vezes, que na perspectiva da UNITA seria importante que os portugueses se mantivessem em Angola, por alguns anos, através de um estatuto a discutir. A evolução do processo, sobretudo a aliança FNLA/UNITA e a saída progressiva de Portugal, provocaram neste movimento, o desencanto e a desconfiança em relação a Portugal, que agora se materializava.
No dia 11 de Setembro, o MPLA desencadeia uma ofensiva a norte de Luanda, tendo chegado aos Libongos. Assim se demonstrava ser possível aliviar a pressão que a FNLA pretendia manter em relação à capital. Este movimento dispunha, nesta altura, de apoios externos que continuavam a ser insuflados tendo em linha de conta a independência que se aproximava. A FNLA não justificava os desaires desses apoios dada a sua falta de inserção popular. Acabaria, assim, por morrer aos poucos e tanto mais depressa consoante os golpes que lhe eram sucessivamente vibrados pelo MPLA.
Em 16 de Setembro, chegam a Luanda os delegados da reunião de Lusaka, para conversações com o MPLA. Nesta reunião, tinham estado presentes a República Popular do Congo Zâmbia, Tanzânia, Botswana, e Moçambique. Seguiram-se, depois, outras reuniões neste mesmo local, possivelmente para se assentarem melhor os princípios fundamentais e as tarefas concretas, no sentido do novo não-alinhamento em África. De facto, é comum ouvir-se cm relação à RPA que esta é mais um «satélite» da URSS. No entanto, poucos conhecem o espírito do manifesto de Lusaka e as atitudes de países como a Tanzânia, perante a Federação que esta constituía com o Quénia (pró-EUA) e o Uganda (pró-URSS). Isto para não falar da República Popular do Congo ou da Zâmbia, condicionada por tantos e variados sectores. Do leque de países reunidos em Lusaka. resultou pois uma delegação que travou conversações com o MPLA, que (não o esqueçamos) estava na altura perante ameaças bem concretas.
Isto não impede, porém, que certamente se tenham delineado as grandes linhas estratégicas com vista ao não alinhamento desses países, única forma de poderem, de futuro, desfrutar de uma verdadeira independência. Algo de semelhante está aliás, a acontecer em relação à Rodésia; e algo de semelhante se, concretiza, por exemplo, numa Nigéria. E tudo se materializa, finalmente, no grande apoio diplomático que o MPLA foi sucessivamente obtendo no continente africano, a ponto de ter decisivamente influenciado a correlação de forças a nível da OUA.
Mas. entretanto, agigantava-se o espantalho da internacionalização do conflito, avulta-se a arena dos interesses que, derrotados no campo de luta, julgam poder resolver os reais problemas dos povos, recorrendo a grandes organizações, dispondo de grande poder militar. Assim, em 19 de Setembro, o grupo africano na ONU, rejeitava uma proposta de Leopold Senghor (Senegal), no sentido de remeter para a ONU o problema de Angola. Em 27 de Outubro, este mesmo grupo tomaria uma posição clara, reprovando a acção da coluna, que vinda da República da Africa do Sul, tentava desestabilizar a situação político-militar em Angola, nas proximidades da data da Independência, favorecendo assim as posições das já decrépitas FNLA/UNITA.
Mas, ainda em Setembro, no dia 21, a FNLA conseguia retomar o Caxito e a Barra do Dande, nas proximidades de Luanda.
Nos dias a seguir, a OUA reúne para apreciar, entre outras coisa, a situação em Angola. A OUA afirma, então a sua posição de que deveria constituir-se um Governo de Unidade Nacional, englobando os três Movimentos. Em seguida, envia a Angola uma numerosa delegação, que entrará em contado com os três movimentos. Nesta altura, portanto, o MPLA não dispunha ainda, na OUA, do apoio que depois foi sucessivamente conseguindo.
Também a Conferência dos Países Não-Alinhados, realizada em Lima, no Peru, se havia manifestado favoravelmente em relação ao Movimento de Agostinho Neto e era flagrante o apoio que estes lhe dispensavam na ONU.
Em, 10 de Outubro chegaram a Luanda as delegaçôes da OUA, acontecendo então uma impressionante movimentação popular durante a sua visita. O MPLA não perdia o ensejo de mostrar a sua real implantação. Entre 15 e 17 de Outubro a delegação vai a Nova Lisboa a fim de contactar a UNITA e entre 17 e 19 vai ao Ambriz para contactar a FNLA.
Entretanto entre 16 e 17 a FNLA desencadeia acções na 1ª Região Político-Militar do MPLA, situada a Norte de Luanda, a que possivelmente não é alheia a presença dos observadores da OUA.
A 19 de Outubro o Directório do MPLA faz uma declaração, lida pelo Presidente Agostinho Neto, na qual acusa a FNLA de ser a culpada dos acontecimentos. A 22 do mesmo mês, um grupo de portugueses (que depois virão a Portugal), reúne-se e aprova uma moção em que se exige que a Independência seja dada ao MPLA.
Ainda em Outubro, Vítor Crespo desloca-se a Angola, tendo do estado no dia 23 em Luanda, dia 24 no Ambriz e no dia 25 em Nova Lisboa.
A data da Independência aproximava-se a passos largos. Em Angola a posição era cada vez mais favorável ao MPLA, apesar dos obstáculos que faltava vencer. Consequentemente a pressão internacional aumentava (lá e cá).
Então, em 26 de Outubro, processa-se a entrada em Angola de uma coluna militar que, vinda da Africa do Sul, anunciava entrar em Luanda até 8 de Novembro. Os objectivos eram, pois, claros e inserem-se numa manobra desesperada mais vasta que visava tentar o impossível. Em Portugal, alguns políticos afirmavam que o MPLA estava por dias. Aqui, a correlação de forças, não permitia que Portugal assumisse uma posição clara.
A entrada desta coluna, conjuntamente com a movimentação de forças da FNLA/UNITA, vai dar origem a uma série de combates, extremamente violentos, em três linhas fundamentais, que tentavam superar o MPLA: de Sul para Norte e junto à costa, apresentava-se a coluna militar que referimos; sensivelmente de Leste para Oeste, desenvolviam as forças da FNLA/UNITA; de Norte para Sul avançavam as forças da FNLA/Zaire.
O ponto de confluência fundamental era Luanda. Os objectivos principais, o domínio da faixa costeira, a Norte e Sul e a partilha do MPLA entre a área de Luanda e o Leste.
Entre os dias 1 e 5 de Novembro, a ONU reúne em Kampala, estando presentes observadores portugueses, expressamente convidados para o efeito. Portugal afirma que reconhecerá os Movimentos de Libertação até à data da Independência e que a soberania será entregue ao Povo angolano. Ficava, pois, em aberto, o reconhecimento de um Governo em Angola.
Retornados não são seres de outra espécie
No dia 2 de Novembro, termina a ponte aérea, enquanto se carregam os últimos navios incluídos na ponte marítima. A ponte aérea, a maior da história da humanidade, tinha constituído das principais preocupações das autoridades portuguesas. Havia que garantir, a quem desejasse embarcar, a possibilidade de o fazer, embora sem encorajar as pessoas para que o fizessem. Os problemas que se levantaram e que foi preciso resolver revelaram-se imensos. Assim, houve que ter em conta os elevados custos da operação e foi necessário arranjar os meios (gratuitos e fretados) planeando depois a sua utilização racional articulada com os problemas do combustível que se tentava arranjar nos mais diversoso locais. Foram enviados petroleiros para obviar as falhas do fornecimento das refinarias de Luanda e a máquina dos Negócios Estrangeiros tentava conseguir a chamada “gasolina política”, que por vezes faltava. Havia que garantir a segurança, desde os terminais aéreos e marítimos, até à alimentação e saúde dos numerosos refugiados que se aglomeravam, impacientes. Nos portos e aeroportos, a bagagem amontoava-se. E as pessoas partiam, por vezes sem os seus haveres, acumulando-se depois no aeroporto de Lisboa. Havia ainda o problema das tranferências de dinheiro, da quantidade de bagagens que cada um podia trazer, etc, etc, etc... As reacções dos indivíduos eram as mais diversas. Desde os que colaboravam com as autoridades organizando os embarques nos terminais, viajando vezes sem conta, entre Angola e Portugal, ou acolhiam aqui os refugiados que iam chegando. Outros, traumatizados pelos acontecimentos, lançavam em frente o seu egoismo e tentavam passar o que podiam, mesmo que isso significasse que outros nada poderiam trazer. O controlo de tudo isto era dificílimo e os negócios ilícitos proliferavam.
Com a vinda dos refugiados, o povo português assumia uma maior consciência da magnitude do problema. Mas esse problema não assumia a dimensão nacional que efectivamente tem, nem a incapacidade de o enfrentar. Muitos acabavam por repelir simplisticamente os que acabavam de chegar, apelidando-os de colonialistas, reaccionários e um perigo para a Revolução. Mas o problema não era só este. De facto qualquer massa de desadaptados é um perigo social, sobretudo se estes são traumatizados, como é o caso. Era preciso pois acolhê-los condignamente, integrá-los na sociedade, inclui-los nos circuitos de emigração, que permitissem o seu refluxo para a terra de onde tinham partido.
No período que vai de Agosto a 31 de Outubro, os números registados no que respeita a transporte de pessoal e material foram: TAP comercial, 68.761; TAP, aviões fretados 46.134. Em voos gratuitos temos a TAP com 1.382, EUA 30.727, URSS 4.771, França 3.874, GB 5.906, RFA [República Federal Alemã], 4.195, RDA [República Democrática Alemã] 4.039. Por via marítima foram transportados em navios fretados 5.104 pessoas e em navios oferecido pela URSS 690. Isto perfaz um total de 238.265. No que respeita a bagagens, foram transportadas na ponte aérea 1.140 toneladas e por via marítima (comercial) cerca de 226.000 metros cúbicos, além de 15.490 viaturas.
Evidentemente, que além destes números, haverá que contar com os refugiados que abandonaram Angola, quer pelas fronteiras Sul e Norte ou para a Zâmbia (poucos) e que depois utilizaram meios não controlados. Há que contar também com os que saíram de Angola antes desta data. No entanto, é inegável que o maior número de refugiados utilizaram estes meios no período considerado, pelo que o número total não excederá possivelmente as 320/350.000 pessoas.
Em 11 de Novembro aconteceu a Independência de Angola. Depois do arriar da bandeira na fortaleza, ao pôr-do-sol, o último alto-comissário, almirante Leonel Cardoso, embarcava no «Niassa» que, juntamente com os outros navios aguardara dentro dos limites das águas territoriais o primeiro minuto do dia 11, zarpando em seguida para Portugal. Em Luanda, seguir-se-iam diversos festejos e comemorações, sob a égide do MPLA e na presença de diversas entidades estrangeiras convidadas por este Movimento, Da presença portuguesa, restava agora, numa qualidade semioficial, o dr. Teixeira da Mota, além de todos os portugueses que haviam efectivamente permanecido na terra que consideraram sua. A UNITA e a FNLA, haviam proclamado a República Democrática de Angola, sem que no entanto, esta viesse a ser reconhecida por qualquer país. A situação militar era ainda tensa. Avizinhavam-se grandes combates, entre o MPLA, que havia formalizado um pedido de auxílio a Cuba e à URSS e os seus opositores, que dispunham dos apoios que se conhecem.
Em Portugal, a independência de Angola era um problema grave sob o ponto de vista político. Não só devido aos diversos prismas com que o problema era visto por diferentes forças políticas, mas também pelo peso da pressão externa. Não foi, pois, possível a tomada de uma resolução, que, pelo menos levasse em linha de conta, de uma maneira realista, os interesses materiais do Povo português. Portugal, teve nos últimos momentos do período da descolonização deste território, grandes hipóteses de entrar no caminho das boas relações com a RPA [República Popular de Angola], em melhores condições do que as actuais. Para resolver o problema da posição portuguesa, punham-se diferentes hipóteses, desde o reconhecimento de jure do MPLA, ao reconhecimento de facto deste Movimento, que poderia ser acompanhado ou não do reconhecimento »com efeitos limitados» dos outros Movimentos. Uma posição destas tinha profundas implicações em relação ao panorama político e militar, sobretudo no respeitante à política externa. Assim, uns, talvez desconhecendo a essência do problema, afirmavam que o MPLA estava por dias, outros, receavam possíveis reacções de retornados (sem ter em conta o que representava para a resolução dos seus problemas), mas a grande maioria receava fundamentalmente as reacções de países estrangeiros.
O ambiente político em Portugal já se encontrava bastante complicado. Assim, embora estando prevista uma deslocação de Vítor Crespo a Luanda onde assistiria a uma cerimónia com o país já independente (e nisto consistiria o reconhecimento de facto), esta foi cancelada à última hora, já que o Governo reunido em S. Bento não dava o seu aval a este procedimento. Estavam estabelecidos à volta deste assunto (e não só) os choques relativos, entre o Conselho da Revolução e as forças presentes no Governo, o que viria a contribuir possivelmente para a reformulação da direcção polítíco-militar em 25 de Novembro.
Depois, como todos sabemos, o problema foi sendo sucessivamente adiado, as relações entre os dois países passaram por melhores e piores momentos (mas nunca bons e suficientes) enquanto outros países reconheciam primeiro que Portugal, uma situação que já era evidente há muito tempo. Resta-nos agora esperar, que se ultrapassem as dificuldades que restam, para entrarmos numa época de franca cooperação. E que os refugiados, vítimas directas de uma situação que os ultrapassou, também compreendam que esta será a única e a melhor via para a tentativa de solução dos seus problemas, opondo-se fundamentalmente às manobras dos que persistem querer mantê-los como seres de outra espécie, necessariamente desenquadrados do pais onde se acolheram.
Dezasseis anos depois, a data contínua bem viva
Pela primeira vez em declaração oficial, os Estados Unidos revelaram a presença de tropas cubanas em Angola em Novembro de 1975. Três meses depois, durante uma breve visita a Caracas, Henry Kissinger disse, em privado, ao presidente Carlos Andrés Perez: «Os nossos serviços de informação estão tão deteriorados, que só soubemos da ida dos cubanos para Angola quando já lá estavam».
Naquela altura, já estavam em Angola muitas tropas, especialistas militares e técnicos civis cubanos, em número que ultrapassa o que Henry Kissinger poderia prever. Havia tantos barcos cubanos ancorados na Baía de Luanda, que o Presidente Agostinho Neto, ao contá-los da sua janela, sentiu um estremecimento de pudor, próprio do seu carácter. «Não é justo teria ele dito a um funcionário amigo — por este caminho, Cuba vai arruinar-se».
E provável que nem os próprios cubanos tivessem previsto que a ajuda solidária ao povo angolano viesse a alcançar tamanhas proporções. O que sabiam, desde o início, era que a acção teria de ser decisiva e rápida, e que de modo nenhum se poderia perder.
Os contactos entre a revolução cubana e o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) estabeleceram-se pela primeira vez em Agosto de 1965, quando «Che» Guevara participava nas guerrilhas do Congo e desde então intensificaram-se bastante. No ano seguinte, esteve em Cuba o próprio Agostinho Neto, acompanhado por Endo, o comandante-chefe do MPLA, que viria a morrer durante a guerra, tendo-se avistado ambos com Fidel Castro.
Em breve, e pelas próprias condições da luta em Angola, esses contactos tornaram-se apenas eventuais. Só em Maio de 1975, data em que os portugueses se preparavam para retirar das colónias de Africa, o comandante cubano Flavio Bravo se encontrou em Brazaville com Agostinho Neto, altura em que este lhe solicitou auxílio no transporte de um carregamento de armas, tendo-o consultado, por outro lado, sobre a possibilidade de uma assistência mais ampla e específica. Consequentemente, o comandante Raul Diaz Arguelles deslocou-se, três meses mais tarde, a Luanda, à frente de uma delegação civil cubana, e Agostinho Neto foi, então, mais preciso, ainda que não ambicioso: solicitou o envio de um grupo de instrutores para fundar e dirigir quatro centros de treino militar.
Bastaria um conhecimento superficial da situação de Angola para se compreender que o pedido de Neto era, também, típico da sua modéstia. Ainda que o M PLA, fundado em 1956, fosse o movimento de libertação mais antigo de Angola, e se bem que o único implantado numa base popular mais ampla e oferecendo um programa social, político e económico de acordo com as condições próprias do país, era, contudo, o que se encontrava numa situação militar menos vantajosa. Dispunha de armamento soviético, mas carecia de pessoal especializado para o manusear. Pelo contrário, as tropas regulares do Zaire, bem treinadas e abastecidas, haviam penetrado em Angola desde o dia 25 de Março, proclamando em Carmona um governo de facto presidido por Holden Roberto, dirigente da FNLA e cunhado de Mobutu, cujas ligações com a CIA eram do conhecimento público. A Leste, sob os auspícios da Zâmbia, encontrava-se a UNlTA comandada por Jonas Savimbi, um aventureiro sem princípios, que tinha mantido uma colaboração constante com os militares portugueses e com as companhias estrangeiras de exploração. Por último, as tropas regulares da África do Sul, através do território ocupado da Namíbia, tinham cruzado a fronteira meridional de Angola no dia 5 de Agosto, a pretexto de protegerem as barragens do complexo hidroeléctrico de Ruacana-Caluaque.
Todas estas forças, com os seus enormes recursos económicos e militares, estavam prontos para cerrar à volta de Luanda um círculo irresistível, em vésperas do 11 de Novembro, data em que o Exército português abandonava aquele vasto, rico e formoso território, onde tinham vivido felizes durante quinhentos anos. De modo que, quando os dirigentes cubanos receberam o pedido de Neto, não se limitaram a cumpri-lo à risca, tendo decidido mandar de imediato um contigente de 480 especialistas, que num prazo de seis meses deviam instalar quatro centros de treino e organizar 16 batalhões de infantaria, bem como 25 baterias de morteiro e metralhadoras antiaéreas. Como complemento, enviaram uma brigada de médicos, 115 veículos e uma equipa bem preparada de comunicações.
Este primeiro contingente foi transportado em barcos improvisados. O «Vietname Heróico», o único próprio para passageiros, fora comprado pelo ditador Fulgêncio Batista a uma companhia holandesa, em 1956, e depois convertido em navio-escola. Os outros dois, o «Coral lsland» e «La Plata» eram navios mercantes adaptados de urgência para o efeito. Todavia, a forma como foram carregados ilustra bem o sentido de previsão e de audácia com que os cubanos haviam de enfrentar compromisso de Angola.
Parece insólito que tivessem levado de Cuba o combustível para os veículos. Na realidade, Angola é um país produtor de petróleo e, em contrapartida, os cubanos tiveram de transportar o carburante através de meio mundo, desde a União Soviética. Contudo, os cubanos preferiram actuar pelo seguro, e desde essa primeira viagem carregaram mil toneladas de gasolina repartidas por três barcos. O «Vietname Heróico» levou 200 em tanques de 55 galões cada um, e viajou com as escotilhas abertas, de modo a facilitar a eliminação de gases. O «La Plata» transportou a gasolina na coberta. A noite em que a estiva ficou concluída foi assinalada com uma festa popular cubana, rebentaram foguetes e assistiu-se a prodígios de pirotecnia mesmo nos molhes de Havana, onde uma faúlha perdida podia ter transformado em pó aqueles três arsenais flutuantes. O próprio Fidel Castro foi à despedida como fez posteriormente com todos os que partiam para Angola e, depois de ver as condições em que iriam viajar, soltou uma frase muito sua, mas apesar de tudo em tom casual:
«De qualquer maneira – disse – vão mais comodamente do que na Gramna».
Não havia qualquer garantia de que os militares portugueses iriam permitir o desembarque dos instrutores cubanos. No dia 26 de Julho desse ano, já depois de Cuba ter recebido o primeiro pedido do MPLA, Fidel Castro pediu a Otelo Saraiva de Carvalho, em Havana, que sugerisse ao Governo de Portugal que fosse dada a autorização para a entrada de reforços cubanos em Angola, o que Saraiva de Carvalho prometeu conseguir, sem que a sua resposta tenha alguma vez chegado. De modo que o «Vietname Heróico» fundeou em Porto Amboim a 4 de Outubro, às 6 e 30 da manhã; o «Coral Island» chegou no dia 7 e o «La Plata» a 11, em Ponta Negra. Chegaram sem licença de ninguém — mas também sem oposições.
Tal como estava previsto, os instrutores cubanos foram recebidos pelo MPLA e puseram a funcionar imediatamente os quatro centros de treino para instrutores. Um em Delatando, a que os portugueses chamavam Salazar, 300 quilómetros a Este de Luanda; outro no porto atlântico de Benguela; outro em Saurimo, antiga Henrique de Carvalho, na remota e desértica província oriental de Luanda, onde os portugueses tinham mantido uma base militar, que destruíram antes de retirarem; e a quarta em Cabinda. Nessa altura, as tropas de Holden Roberto estavam tão perto, que um monitor de artilharia cubana, quando dava a primeira instruçâo aos seus recrutas de Delatando, via, do sítio onde se encontrava, os blhdados dos mercenários a avançar.
No dia 23 de Outubro, as tropas regulares da Africa do Sul penetraram através da Namíbia, com uma brigada mecanizada e, três dias depois, ocupavam sem resistência as cidades de Sá da Bandeira e de Moçâmedes.
Era um passeio dominical. Os sul-africanos levavam consigo equipamentos de «cassettes» com música de festa instalados nos tanques. No Norte, o chefe da coluna mercenária dirigia as operações num Honda desportivo, acompanhado por uma ruiva estilo actriz de cinema. Avançava com ar de quem está de férias, sem colunas de exploradores; e nem se deve ter dado conta do local de onde veio o roquete que fez voar o seu carro em pedaços. Na mala da mulher, apenas foi encontrado um vestido de gala, um biquini e o convite para a festa de vitória que Holden Roberto tinha já preparado em Luanda.
No fim dessa semana, os sul-africanos tinham penetrado já mais de 600 quilómetros em território angolano e avançavam para Luanda, à razão de uns 70 quilómetros diários. No dia 3 de Novembro haviam atacado o escasso pessoal do centro de instrução para recrutas de Benguela. Assim, os instrutores cubanos tiveram de abandonar as escolas para enfrentar os invasores, acompanhados dos seus aprendizes de soldados, aos quais davam instruções durante as pausas do combate. Até os médicos reviveram a sua prática de milicianos e foram para as trincheiras. Os dirigentes do MPLA, preparados para a luta de guerrilhas, mas não para uma guerra total, compreenderam então que aquele conluio de vizinhos, sustentado pelos recursos mais repugantes e devastadores do imperialismo, não poderia ser derrotado sem um apelo urgente à solidariedade internacional.
O espirito internacional dos cubanos é uma virtude histórica. Apesar de a revolução o ter definido e adaptado, dos princípios do marxismo, a sua essência encontrava-se muito bem estabelecida na conduta e na obra de José Marti. Esta vocação foi evidente — e geradora de conflitos — na América Latina, na Africa e na Ásia. Na Argélia, mesmo antes de a revolução cubana ter proclamado o seu carácter socialista, já Cuba tinha prestado uma ajuda considerável aos combatentes da FLN na sua guerra contra o colonialismo francês. Tanto assim que o Governo do general De Gaulle proibiu como represália, os voos da companhia cubana de aviação de atravessarem o céu da França. Mais tarde, enquanto Cuba era devastada pelo ciclone Flora, um batalhão de combatentes internacionalistas cubanos foi defender a Argélia contra Marrocos. Pode dizer-se que não existe nenhum movimento de libertação africano que não tenha contado com a solidariedade de Cuba, quer com material e armamento, quer com a formação de técnicos e especialistas militares e civis. Moçambique desde 1963; Guiné-Bissau, desde 1965, os Camarões e a Serra Leoa — todos solicitaram em algum momento e obtiveram de alguma forma a ajuda solidária dos cubanos. O presidente da República da Guiné, Sekou Touré, evitou um desembarque de mercenários com a ajuda de uma unidade de cubanos. O comandante Pedro Rodrigues Peralta, agora membro do Comité Central do Partido Comunista de Cuba, foi capturado e encarcerado vários anos pelos portugueses na Guiné-Bissau.
«Che» no Congo
«Che» Guevara permaneceu no Congo de Abril a Dezembro de 1965. Não só treinava guerrilheiros como também os dirigia em combate, e lutava ele próprio. As suas ligações pessoais com Fidel Castro, assunto em relação ao qual muito se tem especulado, nunca enfraqueceram. Os seus contactos foram permanentes è cordiais, mediante sistemas de comunicação bastante eficazes.
Quando Moisés Tchombé foi destituido, os congoleses pediram a retirada dos cubanos como medida para facilitar o armistício. «Che» Guevara partiu como tinha chegado: sem fazer barulho. Foi pelo aeroporto de Dar-es-Salam, capital da Tanzânia, num avião comercial, e lendo e relendo, durante a viagem, um livro com problemas de xadrez, para tapar a cara durante as seis horas de voo, enquanto, a seu lado, o seu ajudante cubano tratava de entreter o comissário político do Exército de Zanzibar, um velho admirador de «Che» Guevara e que falava nele sem descanso durante a viagem, tentanto obter notícias a seu respeito e reiterando os seus desejos de o voltar a ver.
Aquele circuito fugaz e anónimo de «Che» Guevara em África deixou um rasto que ninguém poderia apagar. Alguns dos seus homens dirigiram-se para Brazaville, aí ensinando unidades de guerrilheiros para o PAIGC, dirigido por Amílcar Cabral, e em especial, para o MPLA.
Uma das forças treinadas por eles entrou clandestinamente em Angola, através de Kinshasa, e incorporou-se na luta contra os portugueses sob o nome de «Coluna Camilo Cienfuegos». Outra, infiltrou-se em Cabinda e, mais tarde, cruzou o rio Congo e implantou-se na zona dos Dembos, onde nasceu Agostinho Neto e a luta contra os portugueses se desenrolou ao longo de cinco séculos. Portanto, a acção solidária de Cuba em Angola não foi um acto impulsivo e casual, mas uma consequência da política contínua da revolução cubana em Africa. Só que havia um elemento novo e dramático nesta delicada decisão. Desta vez, não se tratava, simplesmente, de mandar uma possível ajuda, mas de empreender uma guerra regular e em longa escala, a 10.000 quilómetros do seu território, com um custo económico e humano incalculável e consequências políticas imprevisíveis.
A possibilidade de os Estados Unidos virem a intervir abertamente, e não através de mercenários, e da Africa do Sul, como o tinham feito até então, era, sem dúvida, um dos enigmas mais inquietantes. Todavia, uma análise rápida permitia prever que, pelo menos, teria de pensar três vezes, antes de o fazer, no momento em que acabava de sair do pântano do Vietname e do escândalo do Watergate, com um presidente que ninguém tinha eleito, com a CIA hostilizada pelo Congresso e desprestigiada ante a opinião pública, e a necessidade de se acautelar para que não aparecesse como aliada da Africa do Sul, racista, não só aos olhos da maioria dos países africanos, como, também, perante a população negra dos Estados Unidos, mais a mais em plena campanha eleitoral e no flamejante ano do bicentenário. Por outro lado, os cubanos podiam contar com a solidariedade e a ajuda material da União Soviética e dos outros países socialistas, mas também tinham conciencia das implicações que a sua acção poderia vir a ter na política de coexistência pacífica e do desanuviamento internacional. A decisão implicava consequências irreversíveis, e era um problema demasiado vasto e complexo para que pudesse ser resolvido em vinte e quatro horas. Em todo o caso, a Direcção do Partido Comunista de Cuba teve apenas vinte e quatro horas para se decidir, e fê-lo sem vacilar, no dia 5 de Novembro, durante uma reunião longa mas serena. Ao contrário do que se disse, tratou-se de um acto independente e soberano por parte de Cuba, e só depois da decisão, e não antes, se enviou a respectiva notificação à União Soviética. Noutro 5 de Novembro, dessa vez em 1843, uma escrava de Triunvirato, na região de Matanzas, a quem chamavam a Negra Carlota, tinha empunhado um machado e, à frente de um grupo de escravos, fizera uma rebelião. Como homenagem à sua figura, a acção solidária de Cuba em Angola foi dado o seu nome: «Operação Carlota.»
A «Operação Carlota» teve início com o envio de um batalhão reforçado de tropas especiais, composto de 650 homens. Foram transportados de avião, em voos sucessivos que duraram treze dias, desde a secção militar do aeroporto José Marti, em Havana, até ao aeroporto de Luanda, ainda ocupado por tropas portuguesas.
A sua missão específica era a de conter a ofensiva, de modo a que a capital de Angola não caísse em poder das forças inimigas antes da saída dos portugueses, e, logo de seguida, suster a resistência até à chegada de reforços por mar. Mas os homens que saíram nos dois voos iniciais já partiam convencidos de que chegariam demasiado tarde, e apenas abrigavam a esperança final de salvar Cabinda.
Um segredo guardado por oito milhões
O primeiro contigente saiu no dia 7 de Novembro, às quatro horas da tarde, num voo especial da Cubana de Aviacion, a bordo de um dos lendários «Bristol Britânia» BB 218 de turbo hélice, que tinham deixado de ser construídos pelos seus fabricantes ingleses e eram, assim, alvo de interesse no mundo inteiro. Os passageiros, que se recordam bem de serem 82, visto ter sido um número igual ao dos homens de Granma, tinham um ar saudável de turistas bronzeados pelo sol de Caribe. Todos iam vestidos de verão, sem insígnias militares, munidos de malas diplomáticas e passaportes normais, com os seus verdadeiros nomes e identidades. Os membros do batalhão de tropas especiais, que não dependem das Forças Armadas Revolucionárias, mas sim do Ministro do Interior, são guerreiros milito experientes, de elevado nível político e ideológico, alguns com cursos, leitores habituais e revelando uma permanente preocupação pela superação intelectual. De modo que aquele seu aspecto de civis ao domingo não deverá ter constituido novidade para eles.
Mas, nas malas diplomáticas, levavam metralhadoras, e no compartimento de carga do avião, em lugar da equipagem, havia um bom carregamento de artilharia ligeira, armas individuais de guerra, três canhões de 75 mm e três morteiros 82. A única transformação feita no avião, assistido por duas hospedeiras, era uma comporta, para poderem ser retiradas as armas da cabine de passageiros, em caso de emergência.
O voo de Havana a Luanda fez escala em Barbados, para meter combustível, no meio de uma tempestade tropical, e na Guiné-Bissau, durante cinco horas para esperar a noite, de modo a voarem secretamente até Brazaville. Os cubanos aproveitaram aquelas cinco horas para dormir, o que constituiu, para eles, o mais espantoso sono de toda a viagem, pois havia tantos mosquitos no aeroporto que as roupas das camas ficaram ensanguentadas.
Desembarque de cubanos em Luanda
A imprensa cubana, por questões de segurança, não publicara a notícia da intervenção em Angola. Mas, como acontece sempre em Cuba em assuntos militares tão delicados como este, a operação constituía um segredo ciosamente guardado por oito milhões de pessoas. O Primeiro Congresso do Partido Comunista, que se realizaria dali a poucas semanas, e que constituiu uma espécie de obsessão nacional durante todo aquele ano, adquiriu então uma dimensão nova.
O processo empregue para a formação das unidades de voluntários partiu de uma convocatória privada com os elementos da primeira reserva, que compreende todos os filhos varões entre os 17 e os 25 anos, bem como aqueles que já pertenceram às Forças Armadas Revolucionárias. Convocaram-nos por telegrama, para se apresentarem ao comité militar, sem mencionarem o motivo, mas este era tão evidente que todos aqueles que se achavam com capacidade militar para isso se dirigiram mesmo sem telegramas prévios, ao seu comité militar, pelo que muito trabalho se teve para que aquela solicitude maciça não se convertesse em desordem nacional. Até onde o permitiu a urgência da situação, o critério selectivo foi bastante minucioso. Não só se tomaram em conta a qualificação militar e as condições ffísicas e morais, mas também os antecedentes de trabalho e a formação política. Apesar deste rigor, são incontáveis os casos de voluntários que lograram enganar os filtros da selecção. Sabe-se de um engenheiro qualificado que se fez passar por condutor de camiões, de um alto funcionário que se fez passar por mecânico, de uma mulher que esteve prestes a ser admitida como soldado raso. Sabe-se do caso de um rapaz que foi sem licença do pai e que, mais tarde, se encontrou com ele em Angola, porque o pai também tinha ido às escondidas da família. Em contrapartida, um sargento de vinte anos não conseguiu que o mandassem de maneira nenhuma e, contudo, leria de vir a suportar o seu machismo ferido, por terem mandado a mãe, que é jornalista, e a noiva que é médica. Alguns deliquentes comuns, encarcerados, pediram para ser admitidos, mas nenhum desses casos foi contemplado.
A primeira mulher a partir, em princípios de Dezembro, tinha sido preterida muitas vezes, com o argumento de que «aquilo era muito pesado para uma mulher». Estava a preparar-se para ir clandestinamente de barco, e até já tinha escondido a sua roupa a bordo, com a cumplicidade de um companheiro que era fotógrafo, quando veio a saber que tinha sido escolhida para ir legalmente e por avião. O seu nome é Esther Lilia Diaz Rodriguez, uma ex-professora de vinte e três anos que ingressou nas Forças Armadas em 1969, tendo uma boa nota em tiro de infantaria. Com ela partiram, também, três irmãos, cada um de sua vez: César, Ruben e Erineldo. Todos por sua conta e, sem terem combinado, os quatro contaram a mesma mentira à mãe: que iam para as manobras militares de Camaguey, por causa do Congresso do Partido. Regressaram sãos e salvos, e a mãe está orgulhosa por terem estado em Angola, mas não lhes perdoa a mentira sobre as manobras em Camaguey.
As conversas com os que regressaram permitem concluir que alguns cubanos queriam ir para Angola por motivos pessoais muito diferentes. Pelo menos Um, infiltrou-se com o propósito simples de desertar, e logo sequestrou um avião português e pediu asilo em Lisboa. Nenhum deles foi à força, todos tiveram de formar filas de voluntários. Alguns negaram-se a partir depois de escolhidos e foram, depois, vítimas de toda a espécie de insultos públicos e desprezo em família. Mas não há dúvida que a imensa maioria foi para Angola com a plena convicção de cumprir um acto de solidariedade política, com a mesma consciência e amesma coragem com que quinze anos antes tinham rechaçado o desembarque em Playa Giron e, por isso mesmo, a Operação Carlota não foi uma simples expedição de guerreiros profissionais mas antes uma guerra popular.
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Mais um excelente trabalho!
ResponderEliminarTalvez seja do Cáceres Monteiro.
Embora nunca me identificasse ideologicamente quer com "O Jornal",quer com o"Nouvel Observateur",o importante é realçar a diferença abismal entre o jornalismo dessa época e o actual!...
Mais uma vez,parabéns camarada Dias por este trabalho que tarda em ter feedback neste blogue!
Essa foto de soldados montados num carro de combate nada tem a haver com soldados cubanos, primeiro porque o fardamento é português e nunca os cubanos tiveram esse tipo de farda, segundo porque o militar em primeiro plano diz bem que pertence à POLICIA MILITAR DE LUANDA. Esta foto também rebate a propalada ajuda dos militares portugueses ao MPLA, e a bandeira bem o indica como militares portugueses em conluio com a UNITA. Tenho outras fotos em que se vê militares portugueses em berliets apoiando manifestaçôes da UNITA em Luanda.
ResponderEliminarAdorei este texto. Nasci em Angola em 1964 ! Na terra onde nasci, sou filho de estrangeiros!
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