A 2ª CART do BART 6221/74 saiu do Luso a 12 de Agosto, como escolta da coluna auto-transportada, de refugiados civis para Nova Lisboa e o BART 6221/74 saiu do Luso em comboio às 19 horas do dia 17 – com centenas de civis a bordo, milhares de armas e de toneladas de munições pertencentes à OPVDC [Organização Provincial de Voluntários e Defesa Civil], à Polícia e aos Caminhos de Ferro de Benguela, cobiçadas pelos movimentos de libertação, em especial pela UNITA, que não recebia armas do exterior – a FNLA recebia-as do Zaire e EUA e o MPLA da União Soviética e de Cuba – num comboio com 50 vagons puxados por duas locomotivas. Era uma coisa com quase um quilómetro de extensão...
Eis os Relatórios do Comandante do Batalhão, Tenente-Coronel de Artilharia João Manuel De Faria M. Amaro e do Capitão Milton da Costa Figueiredo (Comandante da 2ª CART) mas reportado ao Comando do Batalhão.
Devo dizer que fiquei com cópias destes relatórios porque (já não me recordo porquê) fui eu que os passei à máquina.
No Luso em 03 de Agosto, após os confrontos anteriores entre o MPLA e a FNLA, depois dos quais este Movimento foi finalmente forçado a abandonar a cidade, a situação continuou tensa ante a previsível confrontação entre a UNITA e MPLA, ambos desejosos de dominar uma posição, de grande importância estrategica para as ambições daqueles dois movimentos, como é a da Capital do Moxico.
Previa-se que um confronto entre os dois movimentos fosse violento, prolongado e de desfecho indeciso. Durante a minha permanência no Luso, cerca de duas semanas, esses Movimentos não deixaram de aumentar os seus efectivos e o seu potencial de combate.
O ambiente tornava-se cada dia mais tenso, os boatos de uma confrontação iminente eram constantes e frequentes incidentes noturnos perturbavam a vida da população.
O Comando, especialmente através do Capitão Guerreiro, o Oficial que na altura melhor conhecia os problemas e as pessoas, manteve-se em contacto quase permanente com os Movimentos, procurando informar-se e, dentro do possível, evitar confrontações. Sabia-se de antemão que era uma tarefa votada ao fracasso, pois não seria a nossa intervenção que evitaria o inevitável, mas tentou-se sempre exaustivamente, pelo menos procurava-se ganhar tempo.
Resta acrescentar que durante a minha estadia no Luso, as relações entre as NT e os Movimentos se mantiveram sempre num ambiente de compreensão e respeito mutuos. O que mais nos surpreendeu pela atitude tomada dias depois.
O PROBLEMA POPULAÇÃO
A 03 de Agosto de 1975, num domingo, desembarquei no Luso. Nesse mesmo dia estabeleci os primeiros contactos com os Oficiais do Batalhão e logo, pela primeira vez, me apercebi da existência de um problema de extrema acuidade, que nem sequer fora aflorado em Luanda e que durante os restantes 14 dias que permaneci no Luso, não mais deixou de estar na primeira linha das minhas preocupações e que decisivamente condicionou a actuação do Batalhão durante todo o processo: tratava-se do problema da população do Luso que certamente não deixaria de querer ser retirada logo que se anunciasse a saída do Batalhão.
Logo na terça-feira, dia 5, contactei o encarregado do Governo do Distrito a quem, na presença do respectivo secretário e do Major Machado, expus a intenção das Autoridades Militares de retirarem o Batalhão do Luso no mais curto prazo e da necessidade de fazer constar entre a população essa decisão e aconselhar ao mesmo tempo as Autoridades Administrativas, a tomarem providências imediatas, para fazer face à retirada das pessoas interessadas, que certamente não deixariam de aparecer em número elevado.
No dia seguinte contactou comigo uma comissão de moradores que, intitulando-se representativa da população do Luso, dizia pretender organizar uma coluna auto que tentaria atingir Nova Lisboa, para o que dispunha de 2 máquinas niveladoras da Empresa Tecnil e pessoal empecializado na reparação das estradas e apenas pedindo escolta militar. Obtida nesse dia autorização do CTLIS, foi de imediato comunicado à referida comissão a decisão de dar escolta à coluna e que a mesma, dada a urgência da saída do Batalhão e da premência provocada pela tensão entre os Movimentos, deveria estar pronta a sair na sexta-feira dia 8.
Entretanto, na quinta-feira, dia 7, fui contactado por uma outra comissão à frente da qual se encontrava o secretário do Governo do Distrito a qual, negando representatividade à anterior, veio manifestar a estranheza da população do Luso, pela súbita (para eles) decisão da retirada dos militares, não dando tempo às populações da região para evacuar os seus haveres ou, no minimo, se concentrarem.
Foi-lhes explicado o imperativo da ordem recebida, motivada por razões de ordem politico-militar prementes, ordem entretanto confirmada por rádio do CTLIS considerando “imperiosa e urgentíssima a retirada do Batalhão”. Deste encontro ficou combinada uma reunião da população no Palácio do Comércio, para essa mesma noite, a fim de discutir a organização da coluna e marcar uma data para a sua saída.
Nessa reunião, que foi um triste espectáculo de ataques pessoais, ao Governo e ao Exército, numa perfeita demonstração dos mais baixos instintos humanos, de interesses pessoais mesquinhos a sobreporem-se ao colectivo e de declaradas opções partidárias, chegou-se ao despudor de acusar o Comandante do Batalhão de alarmista, pois, no dizer desses senhores, nada justificava a saída precipitada da população já que o clima de vivência entre os movimentos instalados na cidade, não tornava a situação alarmante.
Como tudo se discutia e tudo se atacava, sem deixar margem para discutir o que ali nos levara, os militares presentes retiraram-se, garantindo estar prontos a continuar a discussão mas apenas com uma comissão eleita pelos moradores e para o fim que ali nos levara: a organização duma coluna auto da população civil interessada em deixar a cidade com escolta militar.
Essa comissão que foi eleita nessa mesma reunião, contactou o Comandante do Batalhão no dia seguinte, tendo ficado assente a organização da coluna e a sua saída do Luso na madrugada do dia 12, numa terça-feira.
Essa coluna, que por intrigas, pressões e certamente promessas de vária ordem não chegou a ter a dimensão que se esperava, saiu efectivamente do Luso às 05H30 desse dia 12, integrando cerca de 200 viaturas e 300 pessoas, números que foram aumentando durante a viagem, sob escolta da 2ª CART/BART6221/74.
PROBLEMA ARMAMENTO
Entretanto e simultaneamente o Comando do Batalhão ia organizando a saída via CF dos restantes elementos do Batalhão.
Só então dei conta de outro problema gravissimo para a retirada em paz do Batalhão e que era a existência, à sua guarda, de alguns milhares de armas e de toneladas de munições pertencentes à OPVDC [
Organização Provincial de Voluntários e Defesa Civil], à Polícia e aos Caminhos de Ferro de Benguela, material cobiçado pelos Movimento de Libertação, em especial pela UNITA que já anteriormente à minha chegada, assaltara uma arrecadação da CCS de onde levara uma centena de armas (Mauser, na sua maioria).
Para além deste material, fora deixado à responsabilidade do Batalhão algumas dezenas de sacos de fardamento que era destinado às Companhias Integradas que não se chegaram a formar, material de Aquartelamento da Força Aérea em estado impecável, caixotes de militares de outras unidades que passaram pelo Luso e que deixaram ao Batalhão o encargo e a responsabilidade do seu transporte, enfim, uma terrível sobrecarga para uma Unidade que era obrigada a retirar urgentemente sob a pressão de ordens superiores e de acontecimentos gravíssimos que de um dia para o outro poderiam pôr em causa a sua saída do Luso, a não ser recorrendo a grandes recursos.
Este problema das armas e munições e a cobiça que elas despertavam à UNITA, foi exposto ao CTLIS e pedida protecção adequada ao comboio, inclusive de meios aéreos. O Comando do Batalhão nunca chegou a ter resposta a esta proposta. Pedi um avião para me deslocar a Nova Lisboa, onde pretendia de viva voz expor todos os problemas que nos afligiam, pois os considerávamos de extrema gravidade, mas essa oportunidade foi-me negada.
Sem pretender atingir pessoas, seja-me permitido manifestar o meu profundo desgosto pelo abandono a que me senti votado como Comandante do Batalhão na breve estadia no Luso.
Não estou aqui a fazer a minha defesa, relato cronologicamente os acontecimentos, mas é-me impossível deixar de pôr uma nota de amargura pela forma, tão de ânimo leve, como foram encaradas superiormente os problemas do Batalhão
2. DESCRIÇÃO GERAL DOS ACONTECIMENTOS
a) A LUTA ENTRE O MPLA E A UNITA NO LUSO
No dia 15, às 19H20, quando faltava carregar a última viatura no comboio, o MPLA e a UNITA desencandearam o que há várias dias vinha sendo esperado, uma confrontação directa entre si, com forte tiroteio de armas ligeiras e pesadas. A zona principal dos combates localizou-se precisamente nas imediações da Estação dos Caminhos de Ferro, onde se encontravam as principais organizações [aquartelamentos] dos M.L.. Para o Batalhão, já todo embarcado, foram momentos particularmente difíceis, pois a qualquer momento poderia ser vítima dos disparos menos precisos e por outro lado não podia tomar qualquer iniciativa ou movimentar-se, pois não podia abandonar o material.
Os combates entre a UNITA e o MPLA continuaram pela noite dentro, intensificaram-se na manhã de sábado (dia l6) e prolongaram-se mais ou menos intensamente até domingo de manhã, quando o MPLA começou a dominar a situação.
Conseguiu-se então, com muito esforço, reunir o pessoal do C.F. necessário à marcha do comboio.
Tivemos de pedir, dar ordens, ameaçar, vencer mil obstáculos e enfrentar uma autêntica resistência passiva por parte de alguns elementos do C.F. interessados em sair do Luso, sim, mas só quando tivessem as suas coisas prontas e os seus carros embarcados, em manifestações do mais puro egoismo e falta de caracter.
Entretanto, grande número de pessoas apavoradas, assediavam-nos com pedidos de transporte. Os casos mais urgentes eram atendidos, à maior parte não se podia valer, pois as duas carruagens postas à nossa disposição já há muito tinham a lotação excedida.
Poucas horas antes da saída do comboio, o Presidente da Câmara do Luso, dirigiu-se-me, dizendo que queria falar com o Comandante do Batalhão em nome da população do Luso e que o comboio não devia partir antes de serem evacuados todos os civis que desejassem sair da cidade. Energicamente foi-lhe respondido que já fora organizada uma coluna auto com protecção militar, que durante a semana tinham circulado comboios, que, enfim, a essa população foram dadas oportunidades, precárias embora, para sair do Luso. Tinham preferido ficar na expectativa à espera do melhor, e só o terror e pavor provocado pela Guerra [Civil] os instara a querer sair precipitadamente, fazendo exigências que estavam para além da capacidade da resolução do Batalhão, até pela própria situação de insegurança e inoperacionalidade em que este se encontrava.
Pois o Sr. Presidente da Câmara chegou ao ponto de ameaçar colocar as crianças e a população à frente do comboio para impedir a sua saída.
Finalmente, cerca das 19h00 do dia l7, o comboio saiu do Luso, no meio de boatos de que a UNITA recomposta e reforçados os seus efectivos marchava novamente sobre o Luso. O comboio era uma composição enorme, com cerca de 50 vagons puxado por 2 máquinas locomotivas, carregado de material de guerra e outro, transportado em duas carruagens e espalhadas pelos outros vagons, para cima de 300 civis, na sua grande maioria mulheres e crianças.
b) A VIAGEM, O DESARMAMENTO DO PESSOAL E O SAQUE DO COMBOIO
Até à Chicala, a cerca de 2 horas de marcha, a viagem decorreu sem incidentes. Na Chicala o comboio interrompeu a marcha.
Passados momentos foi pedida a comparência de alguém do Comando do Batalhão para resolver qualquer problema que surgira. Pedi ao Capitão Guerreiro, oficial operacional, já muito habituado a contactar com os M.L., que fosse ver o que se passava. Momentos depois o Cap. Guerreiro pedia a minha comparência. Fui encontrá-lo junto do Comandante Chewale, da UNITA, o qual depois de me cumprimentar solicitou que o Batalhão lhe cedesse algumas munições. Respondi-lhe negativamente e justifiquei com a posição de neutralidade que o Governo Português optara e o Exército devia escrupulosamente cumprir. Chewale replicou que a tropa portuguesa tinha ajudado o MPLA no Luso, o que veementemente neguei. Depois de mais alguns momentos de discussão sempre amena e de conversa, em que inclusivamente informámos o Comandante Chewale que déramos abrigo ao Delegado da UNITA no Luso, o qual viajava connosco no comboio sob disfarce e bem assim como a dois militares da UNITA que também tinham pedido a nossa protecção, pareceu-nos que o Chewale (e ele assim o declarou) tinha compreendido e aceite a nossa posição.
Nessa condição nos despedimos dele e embarcámos no comboio aguardando o recomeço da marcha.
Passados talvez uns 5 minutos, um dos Comandantes de Companhia veio avisar-nos que o comboio estava impedido de recomeçar a marcha porque a tal se opunha um Major da UNITA junto à primeira máquina, mandei o Cap. Guerreiro esclarecer o assunto, que considerei um mal entendido de somenos importância. Entretanto fui-me apercebendo da proximidade de vários elementos armados da UNITA, dum e doutro lado do comboio, os quais podiam provocar uma confrontação com os nossos soldados, já que alguns desses elementos, dando indícios de estarem fortemente drogados, tomaram atitudes provocatórias.
Resolvi tomar a iniciativa de eu próprio ir falar novamente com o Comandante Chewale. Junto ao edificio da estação encontrei o Cap. Guerreiro que falava com o tal Major da UNITA, que impedira a marcha do comboio. Quando perguntei o que se passava disse-me que queria ver as munições. Perguntei-lhe para que queria ele ver as munições "quero ver as munições" foi a resposta invariável desse elemento até que o Cap. Guerreiro lhe pôs a pergunta: "você quer ver as munições ou quer as munições?".
Ele então confessou que queria as munições. Respondi-lhe que o assunto já fora discutido com o superior dele, Comandante Chewale ficando encerrado com a concordância desse seu superior hierárquico e pedi para o contactor novamente. Respondeu que o Comandante Chewale já ali não estava e que agora era ele quem dava as ordens. E afastou-se abruptamente.
Procurando chegar a uma plataforma de entendimento, decidimos propor a entrega de algumas munições quando, subitamente, sem nos dar tempo a apresentar essa proposta, nos vimos rodeados de algumas dezenas de individuos completamente drogados, que apontando-nos as suas armas e em atitudes alucinadas, exigiam as entregas das nossas. Perante o dilema e ainda na expectativa de entendimento, ordenei ao pouco pessoal que me rodeava que entregasse as suas armas, pois qualquer atitude mais irreflectida poderia provocar um massacre daquele pessoal.
Entretanto procurava chamá-los à razão, mas já não me deixaram qualquer oportunidade.
Enquanto aqueles elementos, sob a ameaça das armas que a qualquer momento podiam disparar, porque, repete-se, estavam completamente drogados ou embriagados, nos obrigaram a recolher ao edificio da estação, os outros elementos que rodeavam o comboio e que, cada vez em maior número saíam da escuridão, ante a perplexidade dos nossos militares, os assaltavam e exigindo-lhes as armas. Foi então que se houviu um tiro, não se sabe disparado por quem, o que imediatamente provocou forte fuzilaria.
Nas carruagens e nos vagons onde haviam mulheres e crianças imediatamente se estabeleceu o pânico. Um massacre poderia estar iminente não só entre a população civil como entre os nossos militares muitos dos quais já estavam desarmados e, se não quisermos agora, neste momento e mais friamente, ser tão pessimistas, teremos de admitir no minimo um número elevado de mortes, já que a nossa posição, dentro do comboio, era absolutamente vulnerável.
Decidi então debaixo do tiroteio tentar falar novamente com o já referido Major da UNITA. Saí do edificio e auxiliado por um militante da UNITA que encontrei, por ele me deixei conduzir. Encontrei o tal Major junto dumas edificações rodeadas pelos seus homens que, enquanto falava com ele, dizendo-lhe que era preciso acabar com o fogo, nunca deixaram de me apontar as suas armas e de me ameaçar de morte.
Conseguiu-se parar o fogo, mas não mais dialogar. O restante pessoal foi rapidamente desarmado e imediatamente uma multidão começou a saquear os vagons. Primeiro só as armas e munições, depois tudo o que apanhavam à mão e despertava a sua cobiça.
Procurei novamente falar com o Comandante Chewale e um militante da UNITA ainda me acompanhou até junto de uma cerca onde, ao fundo, havia sinais de estar gente. Mandou-me esperar e não mais apareceu, até que, empurrado e ameaçado, tive que voltar para junto do comboio.
A meio da madrugada o comboio reiniciou a marcha, para ser detido novamente na estação seguinte: CANGUMBE. O que restava de armas e munições foi descarregado, caixotes foram abertos, diziam que à procura de armas sob o mesmo pretexto, nem as bagagens pessoais escapavam. Os vagons com as viaturas foram desatrelados e desviados para um ramal. Sob o pretexto de que um Furriel, proprietário de uma viatura civil que vinha em cima de uma Berliet, andara aos tiros no Luso contra a UNITA, foi este indivíduo sovado selvaticamente e arrastado para longe do comboio. Receando o pior fui no encalço do grupo e quando me aproximei e verberei o seu procedimento, fui também agredido a soco e pontapé, não tendo conseguido arrancar o Furriel das mãos dos seus agressores. Só pouco antes do comboio partir, o referido Furriel foi liberto em lastimoso estado fisico. Novamente procurámos contactar responsáveis de UNlTA para fazer-lhes sentir a responsabilidade que sobre eles pesava, pelo acto que estavam a praticar contra uma Unidade do Exército Português, mas esses dirigentes não se revelaram nunca. Só a turba, cega pela cobiça da pilhagem e pela droga, nos enfrentara e ameaçava a qualquer protesto mais enérgico.
E foi assim no resto do percurso, com paragem em todas estações e apeadeiros, com mais buscas e ameaças, uma viagem alucinante que a todos traumatizou e marcou.
Pelas 9H00 de 19AGO75 o comboio chegou finalmente a Nova Lisboa, tendo imediatamente sido apresentado relato verbal mas forçosamente incompleto ao Comandante Interino do CTLIS do pesadelo porque acabava de passar o BART 6221/74.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A retirada do BART 6221/74 do Luso foi pensada (?) e decidida sem ter em conta dois factores que considero determinantes na acção desenvolvida pela UNITA contra o Batalhão e na (não) actuação deste.
O carregamento de armas e munições [milhares de armas e toneladas de munições pertencentes à OPVDC [
Organização Provincial de Voluntários e Defesa Civil], à Polícia e aos Caminhos de Ferro de Benguela, que transportávamos era um isco demasiado precioso e aliciante para que o pudéssemos passear impunemente através de 600 Km, de Território controlado pela UNITA e onde este Movimento localiza as suas principais bases, sabendo-se como se devia saber, pelo menos aqueles que, pelas suas funções e tempo de serviço em Angola, melhor deviam conhecer o problema a necessidade que este Movimento tinha de armas e munições e a cobiça que as mesmas lhes despertavam.
Por outro lado a população civil transportada, as condições em que esse transporte se processava, com carruagens apinhadas e pessoas espalhadas pelas vagons juntamente com os militares, conjuntamente com a dispersão dos militares por dezenas de vagons e ainda o facto dos acontecimentos se terem desenrolado de noite, o ter-se acreditado na palavra do Comandante Chewale, um individuo que pelas suas funções na UNITA nos merecia um mínimo de crédito e principalmente ter-se acreditado, que o Exército Português ainda merecia por parte dos Movimentes um mínimo de respeito e consideração (e este foi, no meu julgamento auto-crítico o meu grande erro) que de antemão tornaria inviável uma acção do género da desenvolvida.
Todos estes factores explicam a (não) actuação do Batalhão na emergência. Se a UNITA estava, como os factos confirmaram, disposta a apoderar-se das armas e munições, qualquer tentativa violenta para o evitarmos ter-se-ia saldado, não temos dúvidas, com muitos mortos e feridos, sem hipóteses de qualquer auxilio, que não foi previsto em tempo útil, e de consequências mais que duvidosas quanto ao destino final da carga. Nas condições em que foi decidida, sem ter em consideração factores determinantes e que em absoluto exigiam o planeamento de uma operação à escala superior (nunca a nível Batalhão), com os condicionalismos de toda a ordem e que procurei evidenciar ao longo deste relatório, era uma operação condenada ao fracasso, a partir do momento em que o inimigo (que se julgava não existir) a contrariasse decididamente. E foi isso que sucedeu: um “inimigo" de fraco valor militar, indisciplinado, drogado e inconsciente, mas por tudo isso altamente perigoso, decidiu apoderar-se dos materiais transportados. O Batalhão, mal preparado sobre o ponto de vista operacional, com o pessoal desmotivado para qualquer género de acção violenta, em situação critica dentro de um comboio em que viajavam muitos civis, poderia mesmo assim, ter reagido, com os riscos que tal atitude envolveria. Não o fez. Ficará de pé para quem não esteve presente, a duvida se não seria essa a decisão acertada. Para nos, não era.
ANEXOS
1. MAT. GUERRA
2. MAT. AQUARTELAMENTO
3. ARTIGOS DE CANTINA RANCHO
a. Víveres normais
b. Víveres especiais (R/C)
Quartel em N. Lisboa, 19 de Agosto de 1975
O COMANDANTE
JOÃO MANUEL DE FARIA M. AMARO
TEN.COR.DE ARTa.
_________________________________________________
REGIÃO MILITAR DE ANGOLA
BATALHÃO DE ARTILHARIA N 6221/74 2ª COMPANHIA
« RELATÓRIO DE ACÇÃO N°2 »
COLUNA AUTO PARA ESCOLTA DE REFUGIADOS DO LUSO PARA NOVA LISBOA
Em 12AGO75 saiu do Luso uma coluna com cerca de 200 veículos civis escoltada pela 2ª CART/BART 6221/74, transportada em 3 Berliets e 3 carros pesados civis. Seguiam também na coluna 2 auto-niveladoras.
As 11h00 a coluna chegou a CANGUMBE, um dos quartéis da UNITA, onde a coluna foi interceptada e cercada por alguns milhares de militares armados daquele Movimento. Após algumas horas de conversações com os responsáveis, permitiram que a coluna partisse, mas antes fizeram uma revista aos carros civis. Depois da revista a coluna seguiu.
Depois daquela povoação, devido ao piso muito arenoso, a coluna começou a deslocar-se lentamente sendo necessário que as auto-niveladoras abrissem novas picadas e a maioria dos carros tiveram que ser rebocados um a um, havendo a louvar o esforço dos nossos militares incansáveis a empurrar as viaturas civis. Pernoitamos entre CANGUMBE e CANGONGA,
No dia 14 ao anoitecer a coluna chegou a CANGONCA onde foi interceptada por militares da UNITA que após uma troca de impressões com os responsáveis não levantaram problemas. Pernoitamos fora da povoação.
No dia 15 à tarde atingimos MUNHANGO onde não houve problemas de passagem. Como faltassem alimentos à coluna e como não conseguíamos comunicar com LUSO nem com NOVA LISBOA, foram pedidos alimentos a NOVA LISBOA via rádio dos CPB. O nosso apelo não foi atendido. Pernoitámos fora da localidade.
No dia 16 pernoitámos entre MUNHANGO e CUEMBA.
No dia 17 a coluna atingiu CUEMBA onde não parou, indo formar-se a cerca de 30 Km depois da povoação. Ao entardecer, com a coluna parada, fomos interceptados por um Capitão da UNITA que começou a levantar problemas. Entretanto surgiu o Major Severino da UNITA que se insurgiu contra aquele Capitão e nos mandou seguir. Com o problema resolvido e como a estrada já era boa e havendo grande número de crianças na coluna sem leite nem alimentos procurou-se atingir GENERAL MACHADO [
actual Camacupa] onde havia hipótese de adquirir estes alimentos. Junto à ponte sobre o QUANZA, perto dum quartel da UNITA aí existente, a coluna caiu numa emboscada preparada pelos militares da UNITA. Era ao anoitecer. Assaltaram o Land Rover das transmissóes que seguia â frente junto aos carros ligeiros, não tendo estes possibilidades de alertar o resto da coluna. Dado o elevado número de militares armados da UNITA que surgiram de todos os lados não foi possível resistir. Por outro lado dada a dispersão de militares em pequenos grupos espalhados ao longo da coluna foi impossível reagir. Além disso, também dado o número elevado de crianças e mulheres que seguiam na coluna qualquer resistencia nossa provocaria um morticínio total dado que estávamos emboscados dos dois lados da via, por grande número de militares da UNITA.
AI fomos desarmados, revistados e alguns de nós barbaramente espancados, sendo roubado todo o material rádio, material de guerra, equipamento, fardamento, artigos pessoais, géneros, etc. Os homens de transmissões que seguiam no Land Rover foram barbaramente espancados tendo de ser socorridos no Hospital de GENERAL MACHADO em estado de choque. Alguns graduados foram enxovalhados e desumanamente agredidos. A seguir ao desarmamento, a coluna sofreu as piores sevícias, pois foi obrigada a parar em cada local onde existiam elementos da UNITA ou FNLA e os carros revistados sistematicamente, assim como foram roubados poucos haveres pessoais que ainda restavam.
No dia 18, pelas 18H00, a coluna chegou a NOVA LISBOA.
CONSIDERAÇÕES FINAIS:
– Numa coluna com cerca de 200 viaturas civis, escoltada por cerca de 100 homens sem apoio de qualquer ordem, num território totalmente dominado pela UNITA, onde encontrámos algumas dezenas de milhares de militares armados deste Movimento, tudo seria de esperar.
– Há a acentuar o facto de termos sido atacados de imprevisto ao anoitecer, só dando conta do facto depois de estarmos totalmente cercados por militares daquele Movimento.
– Qualquer tentativa de reacção do nosso lado seria um suicídio, dado o elevado número de mulheres e crianças que vinham na coluna, na grande dispersão dos nossos militares ao longo da mesma, em pequenos grupos e dado o elevado número de militares armados da UNITA.
– Há a acentuar a ausência de efectivos militares Portugueses entre LUSO e NOVA LISBOA, numa extenção de cerca de seiscentos KMs, havendo a acrescentar que as tropas que estavam em SILVA PORTO [
actual Kuito] tinham sido evacuadas antes da nossa saída do LUSO e não nos sendo proporcionado qualquer auxilio em efectivos militares entre LUSO e NOVA LISBOA.
– Dada a grande distância entre os quartéis mais próximos e dado aos acidentes do terreno não foi possível o contacto, via rádio, com qualquer Unidade Militar.
– O único auxílio pedido através de rádio dos C.F.B. a NOVA LISBOA nao foi atendido, sabendo-se que estávamos sem géneros e havia muitas crianças e mulheres na coluna, o que em parte nos obrigou a andar até ao anoitecer, porque havia crianças sem leite e sem qualquer outro alimento.
MATERIAL FURTADO
................... segue-se a descrição exaustiva do material roubado pela UNITA....................
Quartel em Nova Lisboa, de Agosto de 1975
(Sem assinatura)
______________________________________________